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Um pouco sobre a formação do Vodou

Frater Vameri


Foto por Steve Winter.


É comum que o tema dos artigos que escrevo para este site seja inspirado ou baseado na literatura sobre o Vodou. Isto ocorre, pois estou sempre procurando ler novos estudos e acabo achando teorias e informações interessantes que penso em dividir com os leitores. Ocorre o mesmo nesta semana. Enquanto eu lia o artigo de Leslie G. Desmangles que estou citando aqui, eu pensava no quão importante é entender que o Vodou Haitiano é uma criação autenticamente Haitiana e que tentativas de resgate de práticas do Vodou na África ou em qualquer outro lugar sempre encontrarão, na melhor das hipóteses, um sucesso parcial. Para entender melhor isso, pego carona em Desmangles e gostaria de discutir duas coisas: simbiose e adaptação. Entretanto, não quero discutir esses conceitos por si só, mas sim quero trazê-los à tona para que entendamos como o processo de formação do Vodou pode explicar a diversidade que existe nessa espiritualidade.


Trazidos da África forçosamente e encontrando na então colônia de São Domingos um ambiente inóspito e cruel, os escravos pouco podiam fazer além de manter viva a memória de suas terras natais. Por isso, argumenta-se que em um primeiro momento, os africanos mantinham suas tradições as mais fiéis possíveis ao que era feito na África. Neste cenário, poderíamos imaginar que caso um grupo cujo culto era de Xangô, por exemplo, estivesse, por acaso, num mesmo engenho, repetiriam os cultos como de sua terra natal dentro das suas possibilidades e não se misturariam com outros escravos que estivessem cultuando outra divindade.


Neste cenário é possível levantar três problemas primeiros: 1- esses grupos raramente se encontrariam; 2 – em se encontrando, teriam dificuldades em executar seus ritos de maneira destacada dos demais; 3- materiais necessários ao culto não seriam encontrados na nova terra. Ou seja, qualquer culto, mesmo que primasse pela sua autenticidade, como necessariamente vinha de outro contexto e de outra terra, teria de passar por um processo de adaptação. Voltarei a essa discussão mais adiante.


Quando os colonos começaram a ligar os cultos dos escravos aos processos de resistência, as manifestações religiosas passaram a ser inibidas. Um exemplo disso foi o “Código Negro” de 1685 que tornava ilegal a prática de religiosidades Africanas e obrigava que todos os escravos fossem batizados em até 8 dias de sua chegada à colônia. Este código teve um efeito inesperado. Isto, pois, a pressa em catequizar e batizar os escravos tornava toda a coisa extremamente burocrática. Não havia um esforço significativo da conversão destes homens e mulheres. Todo esse processo era, geralmente, apenas para conseguir um “carimbo”. Assim, o que poderia ter se tornado um processo com alguma eficiência de conversão, revelou-se praticamente ineficiente nisso.


De toda a sorte, a proibição dos cultos Africanos e o batismo trouxeram ao mundo dos escravos o catolicismo Francês, que passou a ser utilizado por estas pessoas em suas cerimônias. Geralmente, esse sincretismo é compreendido como uma forma de resistência – ou seja, para continuarem a cultuar seus espíritos, os Africanos encontraram correspondências entre eles e os santos católicos e usavam os santos como “máscaras”. Entretanto, essa explicação por si só é pobre. Há mais nessa história.


É que mais do que apenas fingir que rezavam para um santo enquanto rezavam para um Vodoun, os escravos passaram a incorporar os dois mundos (católico e Africano) ao seu. Assim, no processo conhecido como simbiose – ou coexistência- essas duas cosmovisões corriam de maneira paralela e justaposta, formando uma coisa nova, com elementos de um e de outro, mas não fusionados. Os santos não eram apenas então “máscaras” para os espíritos, mas os santos eram utilizados como santos para dar maior força ao culto. Ou seja, utilizavam-se do poder de ambas as religiosidades. Davam novo significado ao que era católico sem necessariamente equalizá-lo ao que já existia nos diversos componentes Africanos. É um processo complexo, no qual os elementos católicos foram Africanizados sim, mas não como meros disfarces.


Claro, quando discutimos essa questão, nos concentramos nos escravos que estavam presos nos engenhos. Entretanto, as fugas e a formação de comunidades de escravos fugitivos era um fenômeno significativo. Essas comunidades, muito similares aos nossos quilombos, eram formadas por mulheres e homens de diferentes etnias. Entretanto, em tais comunidades, a liberdade experimentada por essas pessoas era outra e eles então poderiam observar melhor alguns princípios (gerais) das espiritualidades Africanas: 1-geralmente são étnicas; 2 – e incluem as famílias, cujo conceito não é idêntico ao ocidental, e pode incluir pessoas que dividem um mesmo espaço mesmo sem ligação por sangue; 3- ancestralidade e local de nascimento são relevantes. Todos esses princípios eram muito difíceis de serem mantidos e observados nos engenhos, como já discuti brevemente. Entretanto, eles podiam ser (mesmo que parcialmente) resgatados nas comunidades de fugitivos.


Um pequeno destaque – é claro que nos engenhos, os escravos mantiveram organizações e formas de tentar observar suas tradições. Estou querendo destacar que essas iniciativas encontraram condições muito desfavoráveis no seio da escravidão. Por isso, nas comunidades de fugitivos, esse fenômeno da preservação parece ter sido mais bem sucedido.


Nas comunidades de maroons (fugitivos), os Africanos podiam se organizar por grupos étnicos. Em tese isso poderia acontecer de duas maneiras: uma comunidade só para Africanos de determinada etnia; ou uma comunidade composta por diversos grupos étnicos organizados entre si. Esses grupos diferentes dentro de uma mesma comunidade devem ter sido a forma mais comum e acredita-se que formavam sociedades secretas para professarem seus ritos. Entretanto, o contato estreito com outros grupos também levou ao inevitável processo de aquisição de novas práticas e credos. Ora, imaginemos agora isso acontecendo em comunidades distintas, separadas e distantes e com grupos étnicos variados. O resultado, é claro, só pode ter sido uma variedade enorme de expressões religiosas.


Isto pode ser visto, como Desmangles cita, já no século XVIII com os “grupos” de Vodou chamados de Rada, derivado principalmente dos Arada do Daomé, e Petro, com as entidades principalmente do novo mundo. Esta divisão, aliás, permanece na forma da divisão binária mais divulgada dos tipos de espíritos do Vodou cujas categorias são chamadas justamente de: Rada e Petro.


No fim, só me resta concordar com a conclusão de Desmangles: “Em resumo, a formação do Vodou como existe hoje foi um processo gradual de aculturação que ocorreu durante um período de mais dois duzentos anos. (...) Mas os rituais do Vodou nunca foram uniformes nem normatizados durante todo o período colonial. De fato, assim como é hoje, o Vodou não tem um Papa, não tem hierarquia sacerdotal, não tem burocracia oficial que decida sobre a ortodoxia de seus ensinamentos. Cada célula do Vodou formou sua teologia de maneira independente (...)”.


Fica claro que Desmangles tem razão quando observamos o processo que foi discutido nesse artigo. Com uma formação tão diversa e tão plural e com toda a riqueza das etnias Africanas, não seria possível esperar algo que fosse, de fato, normatizado e uniforme. Esta é uma das belezas do Vodou. Assim como era no seu período formativo, ainda hoje, cada grupo terá suas influências mais marcantes e próprias e terá características mais destacas que farão com que cada casa de Vodou expresse sua religiosidade de uma maneira única e legítima.

Referência:

Leslie G. Desmangles. The Maroon Replublics and Religious Diversirty in Colonial Haiti. Anthropos. Bd. 85. H; 4/6 (1990), pp. 475-482.

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