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A conexão entre Pasqually, Papus e São Domingos – Vodou & Martinismo

Frater Vameri

Pasqually.


A tradição esotérica ocidental é grande devedora de duas figuras que estão intimamente conectadas. Eles não foram contemporâneos e nem se conheceram pessoalmente, mas pode-se dizer sem medo que tenham sido irmãos e até mesmo, de certa maneira, mestre e discípulo. Martinez de Pasqually e Papus, as figuras em questão, são nomes amplamente conhecidos por qualquer estudante sério de esoterismo. De Papus, sabe-se muito, mas de Pasqually, bem pouco. Sabemos, porém, que, de maneira surpreendente, é possível que exista um improvável elo entre eles: São Domingos ou, como é conhecido desde a sua independência, o Haiti. Para desfiarmos esse carretel de mistérios, precisamos mencionar um episódio muito particular da vida tão secreta de Pasqually. Só depois poderemos discutir um encontro ocorrido em Paris, já no século XX, que, se compreendido como real, nos dará uma nova visão sobre Papus. Bem, vamos à história.

Diz a lenda da vida de Pasqually que, em 1772, ele embarcou em uma viagem à colônia Francesa de São Domingos, no Caribe, para tomar posse de uma herança. Essa viagem teria sido a derradeira de Pasqually, já que ele morreu em 1774 ainda nessa ilha. Precisamos nos focar especificamente nesse episódio, ou melhor, nesse período da vida e da morte de Pasqually. Como esta personagem é muito enigmática, há muitos mistérios acerca de suas origens, nacionalidade, motivações e todas essas discussões seriam todas muito longas. Portanto, para que continuemos este artigo com coesão, tentaremos entender o motivo apenas da sua viagem à colônia e o que de fato ele fez enquanto lá esteve. Sobre isso é importante destacar que, em 1771, um primo de Pasqually chamado Cagnet[1], oficial da Marinha, havia se mudado para Porto-Príncipe, em São Domingos, o que já estabelece que, de fato, ele tinha família de sangue lá. Além disso, como Cagnet era discípulo de Pasqually, sabemos também que havia um braço para auxiliá-lo nos trabalhos espirituais na ilha. Entretanto, não parece, de fato, que tenham sido Cagnet e nem mesmo a espiritualidade que tenham motivado a viagem de Pasqually.

Papus, num livro sobre a vida de Pasqually, [2] destaca que o próprio teria informado que partiria para São Domingos para tratar de assuntos temporais[3], e especialmente afirmado que esperava se resolver com dois cunhados ricos e com um repositor infiel de uma doação feita por ele que lá morava. Pasqually diz ainda, na carta então discutida, que espera retornar em menos de um ano e que, uma vez que tudo estivesse resolvido, poderia se dedicar inteiramente ao seu trabalho espiritual. Entretanto, sabemos que ele ficou lá até 1774. O que teria acontecido para detê-lo por tanto tempo? Esta pergunta parece ser respondida pelas suas cartas seguintes, onde afirma ainda estar resolvendo questões temporais.

Algumas fontes da tradição alegam que, em 1771, teria falecido, em São Domingos, um homem chamado Pierre Collas, parente da esposa de Pasqually. Isso concorda com a informação dada pelo próprio Martinez, na qual fala de dois cunhados. Além disso, a tradição conta que Pasqually teria se instalado primeiro em Porto-Príncipe e depois ido para Leógâne, talvez o local de fato no qual estariam as posses a serem reclamadas.

Em 1773, correspondência de Pasqually[4] avisa que as questões temporais fizeram-no estabelecer residência na colônia. Ele afirma que nunca perdeu o espiritual “de vista” e que sempre soube levar os dois ao mesmo tempo e que, estando em boa saúde, em breve iria, com a ajuda do “Eterno”, resolver a reivindicação dele pela posse de uma propriedade na colônia e retornar à França.

Em agosto de 1774, nova carta de Pasqually chega [5] e, por meio dela, nós ficamos sabendo que ele está febril. Nesse ano, ele enviou duas cartas à França, esta última e uma primeira em abril, todas sobre assuntos das Ordens. Em 20 de Setembro de 1774, Pasqually morre em Porto-Príncipe.

As evidências sustentam a ideia de que Pasqually teria ido, de fato, à colônia para tratar de assuntos pessoais, mais especificamente ligados às suas posses. Entretanto, será que isso seria suficiente para que pensemos que Pasqually não se dedicou à sua vocação real nesse tempo? Suas cartas atestam que ele conseguia levar assuntos profanos e sagrados simultaneamente, o que nos sugere de que a vida espiritual de Pasqually não ficou estagnada enquanto esteve em São Domingos.

Sabemos que os colonos de São Domingos gostavam particularmente de fazer Maçonaria e que, no momento em que Pasqually aporta lá, já existem diversas Lojas Maçônicas no local. Burnard e Garrigus [6] teorizam que, uma vez que o poder da Igreja Católica era pouco e descentralizado na colônia, a Maçonaria ofereceria um apoio e um exercício espiritual mais robusto. Assim, quando Pasqually chegou à colônia, não encontrou uma tela em branco, mas um ambiente no qual as suas ideias e as suas lojas de Élus Coën poderiam prosperar. São Burnard e Garrigus novamente que nos informam que, de fato, Pasqually teria fundado duas lojas de Élus Coën na colônia. Aliás, estes autores também chamam a atenção para a mistura entre a maçonaria e o Vodou haitiano, assunto que nos interessa muito e que devemos explorar.

A tradição oral que me foi passada por um haitiano depositário de linhagens de Pasqually afirma que, na verdade, ele teria ido à colônia São Domingos já com a intenção de entender melhor e aprender sobre o Vodou, a religiosidade que nasce naquela ilha principalmente a partir da mistura de práticas africanas e cristãs e que se ocupa de interações entre os homens e os espíritos. Essa teoria, contudo, é muito improvável. A provável primeira grande descrição do Vodou para o público europeu ocorreu com a publicação de um livro em 1797-1798, por Moreau de Saint-Méry. Assim, como Pasqually saberia sobre o Vodou[7] em 1772?

Há algumas possibilidades. Pasqually tinha dois cunhados na colônia e, antes deles, também Pierre Collas. Estes talvez fosse maçons e até, quem sabe, dividissem do “gosto” de Pasqually pelo ocultismo. Não é um absurdo pensar que em trocas de cartas eles tenham mencionado as estranhas cerimônias dos escravizados, com serpentes, danças e a “descida” dos deuses. Outra via pode ter sido por Cagnet, que chegara à ilha em 1771 e que pode tê-lo alertado sobre o Vodou. Cagnet era discípulo de Pasqually e certamente saberia identificar algo que parecesse interessante ao seu iniciador.

O que é menos improvável (e nem por isso, o que de fato ocorreu) é que Pasqually tenha chegado à colônia e lá tenha descoberto o Vodou e talvez se interessado pela sua prática. Resgatando a observação de Burnard e Garrigus, o primeiro local de contato de Pasqually com o Vodou pode ter sido na própria Maçonaria. Não sabemos exatamente como, mas sabemos que Maçonaria e Vodou se encontram, de maneira que alguns espíritos do Vodou, os Lwas, são considerados maçons. Seria possível entrar, aqui, numa discussão complexa acerca da sociedade colonial de São Domingos, mas pularemos isso em favor do foco. Sabemos que algumas lojas Maçônicas na colônia aceitavam mulatos e homens pretos livres e esta pode ter sido a ponte para o encontro da Maçonaria com o Vodou.

Outra tradição que é passada oralmente conta que Pasqually teria conhecido o Vodou por meio de uma família de escravos que ou trabalhava para ele ou para os seus anfitriões, em Leógâne. Estes, versados amplamente nos mistérios do Vodou teriam passado para Pasqually segredos e iniciações e ele os teria instruído em sua doutrina e em suas ordens esotéricas. Existiu uma evidência de que isto possa ter ocorrido de fato e ela se materializou na figura de Lucien-François Jean-Maine, descendente desses escravos, sacerdote Vodou e versado em diversos mistérios esotéricos e que é considerado o fundador da Ordo Templi Orientis Antiqua (OTOA) e de La Couleuvre Noire (LCN), ordens feitas famosas por Michael Bertiaux. Voltaremos a essa personagem chamada Jean-Maine mais adiante.

A pergunta que resta ser feita é – podemos encontrar influência do Vodou nos trabalhos de Pasqually? Esta pergunta já nasce dificílima de ser respondida, uma vez que influências muitas vezes se convertem em elementos muito sutis. Sendo brutalmente honesto, não há resposta direta e objetiva para esta pergunta. Olhando os selos e sigilos dos Élus Coëns, conforme encontrados nos manuscritos de Saint-Martin[8] é possível notar uma grande semelhança com os vèvès[9] do Vodou. Entretanto, saber exatamente se todos esses sigilos foram desenvolvidos antes ou durante a viagem de Pasqually à colônia e se foram, de fato, recebidos pelo próprio, é tarefa que não consigo completar. O que posso afirmar é que alguns deles foram desenvolvidos antes de 1772, portanto, antes de Pasqually estabelecer residência na ilha.

Se fôssemos nos aventurar por avenidas de especulação mais espirituais, poderíamos até mesmo pensar em um parentesco desconhecido entre os métodos de Pasqually e a espiritualidade de São Domingos. Talvez essa ligação tenha colocado as engrenagens do destino em movimento e levado Pasqually até São Domingos, onde algumas chaves podem lhe ter sido reveladas. Entretanto, sem o sustento de evidências, toda essa argumentação fica muito vulnerável.

Podemos então fazer a pergunta inversa - será que há influência de Pasqually no Vodou? Esta pergunta nos oferecerá uma resposta mais satisfatória. Não é possível determinar isso claramente quando falamos do Vodou haitiano em suas formas mais ordinárias e tradicionais conforme praticadas no Haiti contemporâneo. Apesar disso, existem pistas. Richard Ward[10] apresenta uma teoria interessante envolvendo um espírito invocado em cerimônias dos Élus Coëns. O enigmático espírito conhecido como Barão ou Baran[11], que faz parte de um grupo de espíritos “infernais”, pode ter contribuído, de acordo com Ward, para a figura dos Barões no Vodou, principalmente pelo fato de os Barões serem vistos como Lwas maçons[12]. É evidente que esta é uma conexão frágil, que está no campo das especulações, mas, ainda assim, pode ser que seja o caminho para que as influências concretas sejam reveladas.

Entretanto, se voltarmos à figura de Jean-Maine, veremos nele um sacerdote Vodou que é iniciado nas linhagens teúrgicas de Pasqually e que faz uma síntese desses conhecimentos e experiências dentro do seu sistema da OTOA/LCN. É através da figura de Jean-Maine que chegamos a Papus. Gerard Encausse, ou Papus, foi um famoso ocultista que é creditado como sendo um dos fundadores da Ordem Martinista. Papus, sem dúvidas, era um estudioso do oculto muito dedicado e escritor prolífico. Ele estudou os trabalhos de Saint-Martin e de Pasqually extensivamente e foi profundamente influenciado pela doutrina desses dois mestres. Porém, Papus era mais do que um simples mestre do esoterismo ocidental mais corriqueiro. De sua origem materna, Papus tinha sangue cigano e foi destes que ele aprendeu uma espécie muito particular de feitiçaria e de magia. Além disso, Papus era um verdadeiro interessado em diversos sistemas e esse seu interesse se encontrou com a oportunidade quando conheceu Jean-Maine em Paris, em 1910[13].

Papus.



O que ocorreu precisamente e as circunstâncias precisas são coisas desconhecidas. De fato, não há registros em papel desse encontro e nem das trocas que ocorreram entre esses dois homens, de forma que as informações que se seguem são fruto também da tradição oral. É dito que, durante esse encontro, os dois teriam trocados linhagens. Jean-Maine teria passado para Papus o sacerdócio Vodou haitiano e as suas linhagens haitianas com a influência de Pasqually, ao passo que Papus teria passado outras iniciações a Jean-Maine, inclusive o grau X° da OTO de Reuss e o episcopado na Igreja Gnóstica francesa. A consequência mais direta desse encontro foi que Jean-Maine mais tarde fundaria a OTOA com base também nas linhagens[14] e ensinamentos trocados com Papus, mas há outra consequência interessante que frequentemente é descartada.

Notem que Jean-Maine inicia Papus no sacerdócio Vodou, tornando-o um ougan[15]. Novamente, não há registro documental disso. De fato, iniciações em Vodou raramente são ratificadas por documentos escritos, havendo outros meios de confirmação. Aqui, nós poderíamos nos perguntar se o Vodou teve alguma influência palpável na produção de Papus. Eu arrisco dizer (com alguma segurança) que não. Entretanto, isso não serve de evidência contrária ao fato alegado, uma vez que Papus pode ter mantido as práticas devidamente separadas, o que seria, de fato, salutar.

O que isso nos diz, aliado ao interesse de Papus por sua herança cigana, é que ele era um mestre eclético, não se limitando muito quando a questão era a sua espiritualidade e as suas práticas mágicas. Podemos dizer que ele reconhecia, de fato, uma unidade dentro da diversidade. Este destaque é importante, pois frequentemente a figura de Papus é exibida como a de um mestre abnegado e estritamente dedicado aos mistérios puramente herméticos, o que podemos ver que não necessariamente era verdade, embora ele tenha rompido com a Sociedade Teosófica de Blavatsky supostamente por conta da sua ênfase no orientalismo. A verdade sobre esse rompimento é provavelmente mais complexa do que isso, mas esta investigação não cabe neste artigo.

É verdade que tudo que discutimos ao longo destas páginas está envolto em certa aura de mistério. Como salientei diversas vezes, a falta de documentação lança a possibilidade de dúvida sobre algumas informações. Entretanto, é inegável que temos uma malha intricada de fatos e de personagens que se encontram e se reencontram, compondo um quadro bastante típico nas manifestações esotéricas.

Se há algo que podemos apreender de toda esta discussão é que ainda há muitas conexões que pedem por esclarecimentos e por investigações cuidadosas. Há muitas surpresas dentro da malha da tradição esotérica ocidental que podem abrir avenidas importantes de exploração mágica.

[1] Que mais tarde assumiu como Soberano dos Élus Coëns. [2] Páginas 50-51 [3] Ou seja, profanos, corriqueiros, não relacionados ao que seja espiritual propriamente. [4] Também destacada por Papus. Página 52. [5] Novamente em Papus, página 54. [6] The Plantantion Machine: Atlantic Capitalism in French Saint-Domingue and... [7] Chamo de Vodou neste artigo, precisamente o que nestes anos do século XVIII seriam a prática espiritual desenvolvida na colônia. Não podemos compreender sem crítica que esta prática fosse igual ao Vodou como o conhecemos hoje. [8]Angéliques [9] Símbolos geométricos que representam os espíritos e que são, de certa maneira, um ponto focal para os mesmos. Similares aos pontos-riscados. [10] Born of Blood and Fire. Scarlet Imprint. [11] Uma possível tradução para a invocação dos espíritos infernais nos rituals de Élus Coëns é a seguinte: “Eu os conjuro, Satanás, Belzebu, Baran e Leviatã: todos vós, terríveis seres, seres de iniquidade, confusão e abominação, ouçam minha voz e tremam ao meu comando; vós todos, os grandes e poderosos demônios das quatro regiões universais e de todas as regiões demoníacas, espíritos sutis de confusão, horror e de perseguição, ouçam minha voz e tremam quando esta soar entre vós e em suas operações malditas; eu vos ordeno por intermédio daquele que profere morte eterna a todos vós”. [12] Os Barões são espíritos centrais dentro da família dos Gede, espíritos relacionados à morte. [13] Alguns reportam que o encontro teria ocorrido em 1899, o que parece improvável, já que Papus teria sido elevado ao grau X° da OTO por Theodor Reuss apenas em 1908 na “Conferência Internacional Maçônica”. [14] Principalmente com base na OTO. [15] Ou oungan, houngan, ganga ou gangan e outras grafias. Em resumo, um sacerdote.


Este texto foi publicado também no site da "Irmandade dos Filósofos Desconhecidos" - http://filosofosdesconhecidos.com.br/2022/04/14/a-conexao-entre-pasqually-papus-e-sao-domingos/

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