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Um pouco mais sobre o Vodou

Frater Vameri



Pintura por Andre Pierre


Uma das primeiras coisas que cabe falar do Vodou propriamente é que é o termo deriva da Língua Fon, na qual significa “espírito”. Além disso, este termo não é utilizado comumente pelo povo Haitiano para denominar a religião. Na verdade, este acaba sendo utilizado ou pela comunidade acadêmica ou por estrangeiros. Os Haitianos costumam se referir à religião que é conhecida por Vodou como “Serviço aos espíritos” e eles se consideram “Servidores dos espíritos”. Isto é importante, pois aqui, o entendimento dos Haitianos já ensina uma valiosa lição sobre o Vodou: é uma espiritualidade que orbita a noção de interação com espíritos, de contato com o mundo invisível. É a esse mundo dos espíritos, esse mundo mais próximo do divino e dotado de poderes e saberes supra-humanos a qual os Haitianos recorrem frequentemente seja para contemplação, intuições ou até mesmo, como é de se esperar em um país miserável, para a resolução de problemas concretos e urgentes. No Vodou, é possível sentir e ver a ação dessas personalidades que alcançam além do que uma pessoa normal consegue. É uma interação que aplaca um pouco a desolação de se viver em um local com inúmeros e graves problemas.


Para os adeptos do Vodou existe um Deus criador, a quem chamam de Bon Dieu. Entretanto, apesar de único e todo-poderoso, este Deus criador está muito além da compreensão humana e não se interessa tanto pelos nossos assuntos. Durante a criação, portanto, ele teria dado origem a outros espíritos, que, com uma natureza mais intermediária, poderiam melhor orientar e auxiliar o homem, em troca da atenção e dos cuidados dispensados por meio dos rituais. Assim, as interações entre visível e invisível no Vodou não se dão com Deus, mas sim com estes intermediários, os Lwa. Além disso, os ancestrais também possuem um papel importante, como intermediários, mesmo que em menor “hierarquia” do que os do Lwa. Alguns ancestrais, porém, por meio de feitos notáveis, podem tornar-se Lwas, em um processo de “divinização” que os alça a outro patamar na cosmogonia Vodou.


As cerimônias de Vodou revelam bem estas comunicações entre homens e invisíveis. No início, geralmente, Bon Dieu é saudado por meio de orações católicas. Só depois os Lwas são servidos. Cumpre notar que as orações católicas feitas na abertura expõem que o Vodou é uma religião híbrida, de ascendência predominantemente Africana, mas com contribuições católicas, nativas, maçônicas e também do esoterismo Francês. Enquanto os Lwa são servidos, eles podem decidir se juntarem à cerimônia e aí ocorre o fenômeno mais notório do Vodou: a possessão.

A possessão de um “cavalo” por um Lwa é um acontecimento que já foi fantasiado de inúmeras maneiras em ficção e também demonizado pelos ignorantes. É um fenômeno visualmente impactante e conceitualmente instigante, já que trata da cessão do corpo de um ser humano a um espírito. Para os Brasileiros, isto não é tão surpreendente ou fantástico, já que lidam com esses fenômenos também em suas religiões de ascendência Africana. Entretanto, para o resto do mundo ocidental, a ideia da possessão no Vodou é só mais uma variação da possessão demoníaca, para qual a única solução é um Padre exorcista.

Já é possível entender parcialmente as razões pelas quais o Vodou é temido e incompreendido. É preciso despir-se do pensamento racional dominante do Ocidente e também das noções Cristãs predominantes para compreender o Vodou. Ou seja, é preciso deixar o etnocentrismo de lado. Caso isso não seja feito, uma cerimônia Vodou parecerá uma celebração infernal.

A dinâmica entre pessoas e Lwas se dá pela devoção, pelo serviço braçal (limpar templos, altares etc) e pela entrega de “presentes” e “alimentos”. Cada Lwa tem sua preferência. Ogou, por exemplo, um espírito Nagô de origem compartilhada com o Ogum do Candomblé Brasileiro, gosta de rum e de charutos, então estes presentes serão entregues a ele. Erzili, por sua vez, prefere licor de Anis. Portanto, não se deve oferecer rum a ela, mas sim a bebida correta. Além disso, estes espíritos também pedem por sacrifícios animais. Galos para Ogou, Porcos para Erzili, por exemplo. Estes sacrifícios são feitos ritualmente e a carne depois é geralmente compartilhada entre a comunidade.

Apesar de o sacrifício animal ser alvo cada vez mais frequente de críticas na sociedade Ocidental, é uma parte vital do Vodou. É preciso considerar que o Haiti é formado por uma zona rural extensa, onde as pessoas criam animais para alimentação. Assim, o ato de matar um animal para o sustento é corriqueiro para aquelas pessoas. Além disso, como a pobreza é muito alta, nem todos conseguem comer carne e as cerimônias Vodou podem ser uma das únicas oportunidades para que estes consigam este tipo de alimento.

A organização do Vodou é difusa. Isso quer dizer que cada casa de Vodou tem suas regras, embora existam rituais e dogmas que são amplamente conservados. Nisto, ocorre que há muitas diferenças entre as casas, mas o Vodou sempre tem um esqueleto em comum que é reconhecível. Estas diferenças, claro, podem ser impactantes. Por exemplo, no Sul do País é muito comum a prevalência das linhagens de Ason, com hierarquia de cargos eclesiásticos e a entrega do chocalho (Ason), um símbolo que remete à serpente (central no imaginário Vodou) como emblema de sacerdócio. No norte e em outras regiões, outras linhagens não funcionam dessa maneira e a ascensão ao sacerdócio pode ser por herança ou por imposição direta dos espíritos.


Esta falta de organização central é, ao contrário do que possa parecer, fundamental para a coesão do Vodou. Afinal, trata-se de uma religião baseada na comunicação direta com os espíritos. Se há, então, qualquer coisa a ser modificada ou uma inovação a ser acolhida, serão os próprios espíritos que dirão como isto deverá ser feito. Caso houvesse uma figura com poder de legislar e impor regras, estas comunicações seriam enfraquecidas e o Vodou perderia parte importante de seu sentido.

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