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Um estudo de caso com Legba

Frater Vameri


Donald Cosentino passou um período estudando Papa Legba no Haiti nos anos 1980. Seus estudos o deixaram convencido de que Papa Legba é uma boa régua para o sincretismo Haitiano. Gostaria de comentar brevemente os achados de Cosentino, de maneira que nós possamos também melhor compreender o Vodou.


Cosentino começa falando que o Legba dos Fon é um guardião da encruzilhada e que o próprio Deus Mawu Lisa o teria colocado como tal, a fim de que este o deixasse a par de tudo que ocorre no mundo dos homens e dos Deuses. Para que Legba pudesse cumprir tal tarefa, claro, Mawu Lisa deu a ele a compreensão de todas as línguas, assim, ele se torna o mensageiro por excelência, para além de um mero “vigia”.


Além disso, essa capacidade de tradução de Legba é ainda mais poderosa, pois, o autor também comenta como se entende que Legba é quem “traduz” a divinação de Fa para os homens. Cosentino nos apresenta ainda mais duas questões: É com Fa (em sua manifestação feminina) que Legba também demonstra sua virilidade sexual e por conta dessa relação acaba sendo punido a ter sempre o pênis ereto e nunca se satisfazer sexualmente; Ainda, os Fon contam histórias de Legba como músico em um cortejo funerário. Este cortejo acaba assassinando três mulheres e Legba faz sexo com seus corpos. A história apresenta outros elementos, mas cabe dizer que Legba se apresenta dançando como um homem que copula.


Cosentino chama a atenção para o fato do pênis de Legba representar a união. Ora, a união carnal como símbolo da união do invisível com o visível. É, além disso, elemento fertilizador, que além de copular, faz crescer vida. Ou seja, não agencia a mera união, mas garante que esta seja produtiva.


Os leitores do nosso site e os que estão mais familiarizados com o Vodou certamente não devem estar reconhecendo o Papa Legba do Haiti, velho e cansado. É verdade que Papa Legba é o mensageiro e o guardião dos portões e que, sim, mesmo velho, sua bengala e o Poteau-mitan apresentam correlações fálicas. Porém, vemos no Legba dos Fon elementos próprios do Ghedeh, principalmente quanto ao apetite sexual e a dança. Podemos estabelecer então uma conexão entre essa divindade dos Fon e múltiplos elementos do Vodou Haitiano.


Seja como for, as diferenças entre os Legbas são marcantes. Cosentino cita Alfred Métraux que diz que o Haiti transformou Legba menos num mensageiro e mais num porteiro. O que Métraux parece sugerir então é que o papel de Legba no Haiti seja um de distanciamento maior. Que ele apenas “abra os portões” e que as coisas aconteçam por si só. Diferente do Legba dos Fon, este não iria para lá e para cá contar das coisas, mas apenas controlaria o tráfego. Cosentino diz que Maya Deren e Métraux enxergam o Papa Legba Haitiano como uma sombra do que o Legba Fon é. Assim, Métraux faz de Legba, Cosentino explica, um exemplo de como os espíritos Africanos se “degradaram” no novo mundo.


Cosentino parece não se conformar com essa visão (e eu também não concordo com ela) e, por isso, rapidamente destaca que no Haiti uma legião de Mambos e Houngans servem os Lwa. Em uma entrevista com Max Beauvoir, este Houngan esclarece um pouco acerca do que ocorreu com Legba. Beauvoir conta que Legba envelheceu por conta da longa viagem da África ao novo mundo. Durante todo este tempo, manter a comunicação com a África se revelou uma tarefa muito cansativa. Ainda, Beauvoir diz que Legba “perdeu” seu poder sexual já que sua fertilidade é Africana e o Haiti não é a África.


Com isso, Cosentino vai além e nos diz que se o Legba não consegue mais atravessar os mundos, pois está cansado, então surge quem possa e esse algúem é Carrefour (Kalfou), e se revela como uma oposição ao Legba. É Carrefour, no entendimento de Cosentino, que abarca as características de azar e de perigo, pois se Legba está mais para o lado dos Lwa, Carrefour e está mais para o lado do Haiti (e de todas suas dificuldades). Assim, Carrefour é um jovem cheio de energia. Cosentino alega que Papa Legba e Carrefour seriam os dois extremos do Esú dos Nagôs (embora tenhamos focado aqui na discussão do Legba dos Fon, Cosentino também comenta acerca do Esú e de como essas figuras se misturam, para maiores informações, consulte o artigo de Cosentino).


O falo, o apetite sexual, entretanto, Cosentino diz que, de fato, ficou como característica para os Ghedeh. Ele cita Maya Deren que sabiamente já traçava uma linhagem entre estes dizendo que Legba estava conectado ao Carrefour que, por sua vez, tinha conexões com Ghedeh. Entretanto, muito propriamente, Cosentino nos ensina que os Ghedeh não estão restritos a essa linhagem, já que eles apresentam características que não estão presentes em Papa Legba e em Carrefour, como a enganação, malandragem, gula etc. Entretanto, temos que essas características de trapaceiros e encontram no Esú Elegba dos Nagôs, que (nas histórias) causa discórdia por ser de seu mero agrado.


O trabalho de Cosentino usa a figura de Legba do Fon e do Esú dos Iorubás para pensar, como em um estudo de caso, as bricolagems e hibridismos próprios do Vodou Haitiano. Impressiona a clareza com que Max Beauvoir apresenta explicações para fenômenos tão complexos. É a diferença entre a visão acadêmica e a visão da vivência, talvez. Embora o estudo formal possa nos auxiliar a entender diversas questões, Beauvoir me lembra que nada substitui viver a religião.


Referência:

Cosentino, D. Who Is That Fellow in the Many-Colored Cap? Transformations of Eshu in Old and New World Mythologies.The Journal of American Folklore, Vol. 100, No. 397 (Jul. - Sep., 1987), pp. 261-275

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