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O sincretismo dissecado

Frater Vameri


O Vodou tem o sincretismo em um dos seus muitos componentes. Não só o Vodou, porém. A Umbanda e o Candomblé também encontram no sincretismo parte de suas formações. Entretanto, há um movimento que descarta o sincretismo. A alegação básica é a de que qualquer sincretismo seria mero artifício de “enbranquecimento”. Será que o sincretismo é tão somente um disfarce? Uma estratégia de sobrevivência?


Bastide nos lembra de que o Catolicismo Brasileiro foi extremamente pautado pelo culto aos Santos. Ora, tanto no Brasil quanto em São Domingos, Roma era um conceito muito distante. Literalmente. Assim, as colônias, em geral, eram terreno fértil para o surgimento de catolicismos com muitas doses de popularidade. Portanto, a primeira coisa que se precisa entender quando se conversa sobre o sincretismo no Vodou e no Candomblé, por exemplo, é que o catolicismo Brasileiro e também o Haitiano eram muito próprios e distantes do que se pregava “no papel”.


É verdade que os escravizados eram obrigados a engolir goela a baixo o catolicismo e que muitas vezes tinham que festejar os dias de santos. É verdade também que eles usavam santos para representar seus orixás e seus lwas. A questão é que a coisa não ficou só nisso. Ou ela já nasceu mais complexa ou naturalmente se tornou. Lembremos que os Africanos, de maneira geral, vinham de cosmovisões plurais. Ou seja, funcionavam dentro de um mundo no qual havia uma multidão de espíritos. Neste contexto, São Jorge, Santo Antônio, Jesus e a Virgem Maria eram somente OUTROS espíritos que habitavam o mundo e aos quais eles podiam apelar.


Portanto, percebemos que rejeitar o universo dos santos e das figuras católicas não parece ser nada além de uma leitura contemporânea e anacrônica. Precisamos nos lembrar de que o Reino do Congo já em 1491 começa sua cristianização. Ora, antes de Cabral chegar ao Brasil, antes ainda de Colombo chegar à América. É evidente que o catolicismo do Congo, que vinha primariamente de Portugal era altamente sincrético. Assim, é preciso repensar o sincretismo como sendo um fenômeno que vai acontecer somente no novo mundo sob a ótica das religiões de ascendência Africana. Afinal, muitos africanos já chegaram ao novo mundo com um contato estreito com um catolicismo sincrético. E quando digo muitos, muitos mesmo. Os escravizados do Congo foram maioria em muitos locais, como em São Domingos e vieram em número expressivo para o Brasil e para os Estados Unidos.


O escravizado, no Brasil, no Haiti, na Georgia, se embrenhava num empreendimento de reconstrução da sua fé africana. Essa é a ideia geral que nos contam. Entretanto, é preciso considerar essa verdade com mais cuidado. Por exemplo, uma determinada fazenda era majoritariamente tocada por escravizados do Daomé. Se chegasse lá um grupo de Bantus, provavelmente estes seriam absorvidos ao grupo e se adaptariam aos costumes já estabelecidos. Isso não exclui possíveis inovações trazidas por esses Bantus, entretanto. Daí vemos que reconstruir a fé Africana na América de maneira pura é uma tarefa impossível. A América não era a África e as pessoas que estavam aqui agora não estavam nas mesmas condições que estavam na África.


Vamos pensar, porém, que o natural teria sido ocorrer uma fusão de fés africanas, sem interferência do catolicismo. Estaríamos desconsiderando uma parcela considerável dos africanos, como já discutimos e incorrendo em um erro. Além disso, estaríamos admitindo que o mundo povoado pelos mais diversos espíritos dos africanos só recebia outros espíritos africanos, o que além de não fazer sentido, não é verdade, como mostra o caso do Congo.


Assim, vamos tentar olhar para o Santo sincretizado com o Lwa de outra maneira. Em primeiro lugar, não vamos subestimar ninguém. É evidente que os africanos sabiam diferenciar as coisas e sabiam que o santo não era seu espírito. O santo era, de fato, outro espírito, mas que por razões variadas acabava também representando determinado espírito africano (Verger vai defender que isso ocorre por conta da iconografia dos santos e de elementos que lembrassem os espíritos). Assim, podemos enxergar o sincretismo como uma mesma estrada que é pavimentada por duas pedras diferentes – uma católica e uma africana. No fim, a estrada é a mesma, mas onde falta pedra africana, usa-se pedra católica para edifica-la. Em outras palavras, o santo e o espírito trabalham numa mesma via. Portanto, na impossibilidade de usar uma representação de um espírito, você usa algo que esteja próximo à natureza dele.


Claro que houve os casos nos quais os orixás e espíritos africanos se tornaram realmente indissociáveis com os santos ao longo do tempo. Sem falar nos casos nos quais santos católicos foram agregados, como Klemezin do Vodou que é Santa Clara.


O sincretismo então não pode ser mero disfarce. Não o é, pois quem rezava para uma Imagem de São Jorge clamando por Ogum sabia bem que São Jorge não era Ogum, mas entendia que por intermédio de São Jorge, podia chegar ao Ogum. Era uma expansão do universo invisível. Era o uso da espiritualidade do opressor contra ele mesmo. No fim, as religiões do novo mundo foram formadas em meio a essa mistura. Elas não são religiões puramente africanas. Nunca foram. Querer que sejam é apagar sua história.


Ou será que somos tão ingênuos a ponto de acreditar que um escravizado precisava de uma imagem de Santo para rezar para um Lwa? Convenhamos que isso não faz o menor sentido. Se fosse para ter sido mantida uma religiosidade puramente africana, então toda a parte católica seria mero disfarce como alegam e teria sido logo descartado. Ocorre que como é muito mais complexo do que isso e como envolve, de fato, um juntar e não um sobrepor, temos até hoje o sincretismo presente.


Acho muito legítimo quem quer uma experiência religiosa autenticamente africana. Para isso, a solução é ir à África. Antes que me acusem de querer apagar a contribuição dos pretos às religiões do novo mundo, apenas resta dizer que jamais insinuei tal coisa. A contribuição africana há de ser exaltada e lembrada sempre! Percebam que uma coisa não tem nada a ver com a outra.

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