Frater Vameri
Harold Courlander nos brinda com uma história que ele recolheu em campo e que reproduzo aqui inteiramente:
“O Bocor Zandolite convidou pessoas de toda a região. Eles sacrificaram galinhas, bodes e touros, e a festa estava programada para durar sete semanas. Os melhores percussionistas do país estavam tocando e todos dançavam, desde as senhoras e senhores até os bebês que mal sabiam andar. Eles dançaram a noite toda e o dia todo, por dias e dias. O barulho era ensurdecedor. As pessoas podiam os ouvir cantando e dançando a dez morros de distância. O Bocor Zandolite trouxe seu grande tambor Assotor que era tão grande quanto um homem alcançava e quando seus músicos começaram a tocá-lo até mesmo as pessoas na costa podiam ouvir. Deus também os ouvia. Todos os dias e noites ele os ouvia, semanas inteiras. Ele não conseguia dormir durante a noite e durante o dia ele não conseguia trabalhar por cont do barulho. Finalmente, ele chamou São João e o instruiu a descer até a festa do Bocor Zandolite. São João desceu e se aproximou do portão da casa do Bocor Zandolite. Ele era muito sério. O Bocor Zandolite o encontrou no portão. Os tambores estavam tocando e os dançarinos dançavam e os Lwas haviam entrado nas cabeças das pessoas. O Bocor Zandolite pegou o São João pela mão para cumprimenta-lo. Ele cantou: ‘Factionnaire ouv'e' baye pou' moin passe! Wa wa ile londja londja! Bocor Zandolite, wa wa ile londja londja!’. Então ele balançou a cabeça de São João três vezes e o girou duas vezes, primeiro para a esquerda e depois para a direita. Repentinamente, São João se desconcertou. Ele ficou boquiaberto assim e assado e começou a sua profusamente pela cabeça. Ele agarrou o poste central do local da dança e começou a girar ao redor dele. Então, o Bocor Zandolite o pegou pelas mãos e o entregou uma vela acesa e um copo de água e São João derramou água no chão para o Lwa que estava em sua cabeça. Passou-se uma semana e o barulho só piorava e Deus se perguntava onde estaria São João. Então ele chamou São Patrício e o mandou descer para acabar com a cerimônia. O Bocor Zandolite encontrou São Patrício no portão. Ele o pegou pelas mãos e cantou: ‘Wa wa ile londja londja! Bocor Zandolite, wa wa ile londja londja’! Ele então girou São Patrício para frente e para trás e balançou suas mãos. São Patrício se desconcertou e girou, pois ele tinha um Lwa em sua cabeça também. Outra semana se passou e Deus mandou São Miguel e a mesma coisa aconteceu. Na semana seguinte, Deus mandou São Antônio e quando este não voltou, mandou São Pedro. Porém, quando São Pedro também não voltou, Deus ficou furioso. Ele não dormia há semanas e se sentia muito mal. Então, ele mesmo desceu. Os tambores ecoavam mais fortes do que nunca e metade das pessoas do norte estavam dançando com Lwas em suas cabeças. Deus desdenhava de tudo, e ele ficou desconfiado quando o Bocor Zandolite o encontrou no portão. O Bocor Zandolite pegou Deus pelas mãos para cumprimenta-lo. Ele balançou as mãos de Deus três vezes para baixo e o girou, primeiro para a direita e depois para a esquerda. Deus repentinamente ficou boquiaberto e se sacudiu e ele girou de um lado ao outro da casa. Os percursionistas tocaram uma saudação e os cantores cantaram bem alto e bateram palmas, pois Deus tinha um Lwa em sua cabeça....”
- Retirado de Courlander, H. (1944). Gods of the Haitian Mountains. The Journal of Negro History, 29(3), 339–372. doi:10.2307/2714821.
Os acontecimentos acima descritos, alegóricos, são certamente muito interessantes. O que Courlander argumenta é que embora Deus seja a força mais poderosa, ele não é a força absoluta, como demonstra a história que ele reproduz. Além disso, pode parecer estranho que os santos tenham Lwas na cabeça. Entretanto, se nos lembrarmos de que muitos santos são identificados com Lwas ou ainda, que os santos são uma categoria misteriosa equivalente aos Lwas, talvez esta questão se elucide.
O fato de Deus e dos santos terem Lwas nas suas cabeças não significa que os Lwas sejam mais poderosos do que estes – o que isso parece implicar é em um universo compartilhado, no qual essas coisas coexistem. Assim, o Lwa na cabeça do santo aparece assim como aparecerão em outras histórias, Lwas que são católicos, ou seja, que aceitam o Cristo e os santos. O que fazer disso? Em primeiro lugar, acho que precisamos parar de tentar impor uma lógica cartesiana a essas dimensões. É difícil aceitar que nem tudo precisa ser perfeitamente encaixadinho, mas ao fazê-lo, o mundo pode se tornar mais rico.
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