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Individualidade por símbolo: Veves no Vodou Haitiano.

Frater Vameri





Um dos aspectos visuais mais impressionantes no Vodou Haitiano são os símbolos formados por padrões geométricos e por desenhos que são chamados de veves. Estes veves são assinaturas ou representações simbólicas dos Lwas. Apesar de chamarem a atenção por seus contornos intricados e beleza ímpar, não são meros apetrechos figurativos. Pelo contrário, encontram papel fundamental na ritualística.


Bonhomme e Kerestetzi em um artigo sobre Palo Monte e Abakuá discutem sobre as firmas ou assinaturas, que são também representações gráficas dos espíritos presentes nestes cultos. Estes autores colocam que estas assinaturas são parte fundamental do ritual, aparecendo em diversos momentos e espaços e até mesmo nos corpos dos participantes. Os autores supracitados concluem que são esquemas de toda a ritualística e que dão visibilidade ao invisível e também significam os princípios estruturantes do próprio ritual. É interessante notar que neste artigo, eles destacam que os símbolos são em sua face mais relevante um modo de ação e apenas em segundo plano seriam uma ferramenta de comunicação.


De fato, os autores afirmam que as firmas são os “substitutos ritualísticos para as entidades que representam” e que também significam o iniciado e toda a comunidade. Isto é muito interessante, pois aponta para uma fixação do sutil ou para um adensamento, de certa maneira, do invisível. Além disso, parece sugerir que o ato de desenhar as firmas e demais símbolos funciona também como uma participação do mundo visível e que a construção do invisível depende dessa mão visível, o que lembra a discussão sobre o fetiche.


O artigo citado acima também destaca, de maneira interessante, que Robert Farris Thompson propõe que a firma do Palo Monte têm sua origem na cultura Bacongo e também enxerga uma influência Congolesa nos veves do Vodou Haitiano e nos pontos riscados da Umbanda. O trabalho de Thompson, porém, como alertam Bonhomme e Kerestetzi, apresentaria certas incongruências e faria associações por demais ousadas acerca da continuidade da iconografia Africana no Novo Mundo. Ou seja, alertam para que Thompson pode ter se entregue a comparações que podem ser infundadas, baseadas apenas em similaridades visuais.


No caso dos veves e dos pontos-riscados, os autores citados falam que os elementos coincidentes com a iconografia mágica Europeia são mais flagrantes, o que poderia significar uma influência. Ora, sabe-se muito bem que por todo o muito Ibérico, inclusive pelas colônias, circularam diversas versões dos Livros de São Cipriano, contendo desenhos e símbolos mágicos, inclusive assinaturas de espíritos. Estima-se que estes livros tenham influenciado os cultos híbridos do Novo Mundo. Portanto, não é absurdo considerar que alguns desses elementos estejam presentes em símbolos gráficos rituais.


Lourival Andrade Júnior vai se dedicar a estudar mais especificamente os pontos riscados em Umbanda. Ele entende que o ponto riscado é um símbolo que atua auxiliando o médium e todo o trabalho do terreiro. Ainda, afirmar categoricamente que não serão aceitas corrupções no dito ponto riscado, o que acho curioso, porém, completamente de acordo com a lógica da representação da entidade por meio de símbolo (discutiremos mais sobre isso adiante). Ao mesmo tempo, confirma o que é amplamente sabido: “Cada Exu pode ter mais de um ponto riscado (...)”.


Enfim, munidos dessas discussões prévias, podemos nos dedicar ao debate mais específico sobre os veves. Parece que podemos concordar com algumas das afirmações feitas nos artigos citados. Veves são símbolos específicos de um determinado Lwa. De fato, assim como no caso dos Exus e dos pontos riscados, um Lwa pode ter mais de um veve. Na verdade, um Lwa pode revelar um veve específico a uma casa ou a um praticante, o que torna a quantidade de veves incalculável. Portanto, assim como no caso dos pontos riscados, é verdade que um veve não deve conter corrupções, mas pode abarcar modificações. Se o lado que modifica é o invisível, então é uma inovação válida, mas se o praticante ou o lado visível erra e modifica o veve, toda a estrutura ritualística pode ruir diante desta falta de significado.


Os veves, como comenta Nicholaj de Mattos Frisvold em seu livro “Arte dos Indomados” são geralmente organizados em torno da figura da encruzilhada – de fato uma investigação superficial revelará que diversos veves apresentam essa estrutura, assim como apresentam imagens de serpentes. Frisvold entende isso como uma clara referência ao Papa Legba, que é o Lwa dos acessos e possibilidades. Assim, os veves como símbolos dos Lwas não podem ser compreendidos como inertes, pois ao se valerem de uma lógica similar à da encruzilhada, tornam-se eles mesmos portais e elementos ativos dentro de toda a ritualística.


Além disso, é, geralmente, ao redor ou sobre os veves que são colocadas oferendas, velas e que são realizadas determinadas cerimônias. Assim, veves são espaços sagrado demarcado e se assemelham aos círculos mágicos dos magos da tradição esotérica ocidental. Veves então podem criar um ambiente destacado e diferenciado que favorece ou propicia a manifestação do invisível.


Portanto, em um entendimento similar ao dispensado por Bonhomme e Kerestetzi para as firmas de Palo Monte, os veves do Vodou Haitiano são menos símbolos que comunicam ao praticante algo e mais uma ação concreta em si. Afinal, o praticante precisa desenhar o veve específico para o Lwa que quer chamar, assim, não há um viés de comunicação ou se há é menor. Ou ainda, ele existe, mas não é uma comunicação intelectual. O praticante não ganha novo conhecimento ao olhar um veve necessariamente, embora ele possa ganhar nova compreensão ou intuição. Entretanto, o ato de desenhar o veve e de centralizar parte do ritual ao redor deste significa que é basicamente um elemento dinâmico e que dispara processos.


Sobre a origem específica dos veves há quem afirme que são herança dos nativos da Ilha de São Domingos, os Taínos. Outros, como o já citado Thompson enxergam uma ascendência Congolesa. Este assunto ainda é debatido. Entretanto, muito provavelmente a origem destes símbolos deve encontrar fundamento tanto nos nativos quanto nos Africanos.


A discussão sobre os veves é extensa e poderia render muitas e muitas páginas. Karen McCarthy Brown dedicou seu doutoramento a estes símbolos e produziu uma tese volumosa de quase 500 páginas. Infelizmente, por mais que eu tenha procurado, nunca fui capaz de encontrar este documento nem em mídia física e nem em mídia digital.


Como introdução ao tema, acho que estamos bem servidos. De interesse principal para a OTOA está, eu diria, a compreensão da dinâmica mágica por trás destes símbolos e de como isso pode ser replicado em cerimônias ou na construção de uma cosmogonia própria.

Referências:

JÚNIOR, L. A. Pontos riscados e nominações: Exu em discussão. Mouseion. 22, pp. 135-150. 2015.

BONHOMME, J. & KERESTETZI, K. Les signatures des dieux. Graphismes et action rituelle dans les religions afro-cubaines. Gradhiva. 22, pp.74-105. 2015.

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