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"Depi m piti..."

Frater Vameri




“Depi m piti, m ap chante pou lwa yo. Bilolo!

Se pa ti nèg ki te montre m chante o. (x 2)

Depi nan vant manman m, gwo lwa m yo reklame mwen. Bilolo! (x 2)

Se pa ti nèg ki te montre m chante o

Adje, (ti nèg) ki te montre m chante, msye/Bondje!”


Acima eu reproduzo uma canção coletada por Benjamim Hebblethwaite e que poderíamos traduzir assim:


Desde que eu era pequeno, estou cantando para os Lwas! Bilolo!

Não foi um cara pequeno que me mostrou como cantar.

Desde que eu estava no ventre de mamãe, meus grandes Lwas me reivindicaram. Bilolo!

Não foi um cara pequeno que me mostrou como cantar.

Valha-me Deus, quem me mostrou como cantar, senhor/Deus!


Essa canção, como a maioria das canções para os Lwas é curta e repetitiva. É uma fórmula inteligente para facilitar o ritmo e para que a comunidade possa aprender a canção rapidamente e jamais esquecer. Engana-se fortemente, entretanto, quem confunde isso com falta de sofisticação ou de complexidade. Além da beleza e dos ritmos, precisamos considerar as leituras para além do óbvio que podem ser feitas das canções.


A canção ora transcrita, em particular, é até de entendimento direto, mas muitas apresentam conceitos da cosmogonia Haitiana embebidos em situações absolutamente corriqueiras ou em passagens que beiram o absurdo. A leitura dessas canções não pode ser realizada buscando-se um sentido material, sequencial ou até mesmo uma narrativa linear, pois muitas não apresentarão tais elementos. Isso não importa, precisamos ler as mensagens de aviso, de ensinamento, os códigos, as lições e as definições que são passadas. É claro que essas leituras quando feitas por um estrangeiro tornam-se muito mais desafiadoras.


Vejamos o caso da canção ora analisada. É evidente que ela fala de uma relação de sangue e que vai além da materialidade do mundo. Os Lwas já se “manifestam” ainda na vida uterina da personagem - tomando-o para si ainda no ventre da mãe. Isso estabelece uma relação não só dele com esses Lwas, mas também de sua própria mãe, que lhe passa sangue, alimento e também os espíritos. São os lwas que são hereditários e que correm dentro de uma família.


Além disso, a canção trata de uma conexão forte entre um ser que ainda nascerá e os espíritos. Essa conexão se manifesta pela capacidade de louvar aos Lwas espontânea que a personagem apresenta. O que seria isso? Uma simples inspiração? Talvez, mas podemos também considerar que os Lwas ensinam a ela, de maneira misteriosas e talvez tenham sussurrado em seus ouvidos ainda no ventre ou o façam todas as noites enquanto ela dorme.


É possível considerar que a personagem da canção é uma sacerdotisa ou pelo menos alguém muito ligado ao Vodou. O último verso, de tradução mais difícil e que encerra em si diversos sentidos e traduções distintos, pode ser lido como uma não-conclusão – ou seja, como a personagem, ainda procurando entender o mistério (afinal, quem a ensinou a cantar?) ou como ela chegando a conclusão de que foi Deus quem a ensinou a encantar, concluindo assim a narrativa com um encerramento que sedimenta a não-materialidade. Talvez essa construção dúbia do Kreyòl, para além de ser um desafio ao tradutor que vos escreve (que teve ajuda da tradução em Inglês do Dr. Hebblethwaite), seja, de fato, proposital e deixe a interpretação para quem tiver ouvidos para ouvir e olhos para ver.



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