Frater Vameri
Para a ampla maioria de nós, ocidentais, a alma é um ente misterioso que mesmo supostamente fazendo parte de nossa composição, não é ou bem compreendido ou alvo de interesse. De toda a sorte, nosso conceito de alma geralmente gira em torno de uma substância ou personalidade indivisível, imortal e sutil. Certamente por conta da nossa herança Judaico-Cristã. Enfim, como é próprio do ocidentalismo, rejeitamos todas as outras visões como fantasiosas. Por isso, caso o leitor não esteja familiarizado com o entendimento de alma no Vodou Haitiano, certamente, se surpreenderá.
Antes, porém, uma breve discussão sobre o que é e o que faz a alma será interessante. A opinião mais aceita é de que a alma seja o componente espiritual, de ligação mais direta com o divino, que uma pessoa possui. Esta seria responsável também por algum componente de individualidade, não tanto como entendemos individualidade em nossas vidas, mas uma individualidade mais ampla que abarcaria possibilidades infindáveis. Principalmente para os que acreditam em reencarnação, a alma carregaria todas as personalidades vividas e ainda assim, seria um pedaço único e consciente de algo mais sutil.
Muitas vezes há uma confusão justificada entre o que seria alma e o que seria consciência. Afinal, por conta de nosso estilo de vida, estamos acostumados a nos identificarmos aos nossos pensamentos e gostos. Parece muito intuitivo que nossa personalidade, de alguma maneira expressa pelo cérebro e por nossa consciência seja, na verdade, tudo que somos como pessoas. Porém, há espaço para debate. Há coisas, por exemplo, que não escolhemos conscientemente. Como gostar ou não de certas coisas, como certo tipo de música ou de determinada pessoa, por exemplo. Os pensamentos que surgem sem qualquer convite ou meditação acerca de um tema também já foram usados como argumento de que exista algo além, uma matriz por debaixo disso tudo. Esta, alguns entendem, poderia ser a alma.
É fácil perceber. Não é tarefa simples conceituar a alma e suas funções, mas para além dessa exposição sucinta, todos têm alguma ideia formada sobre a questão. Na esteira dessa certeza, podemos continuar nossa discussão. Que o leitor traga consigo a sua própria concepção e que a confronte com o que o Vodou apresenta. Perceber as diferenças é um dos melhores exercícios possíveis para o nosso próprio conhecimento.
De acordo com Max Beauvoir em seu sítio de internet (www.vodou.org), a alma, no entendimento do Vodou (e cabe aqui uma nota, mesmo no Vodou há debate sobre isso, mas sigamos com as ideias de Beauvoir) apresenta sete componentes. São eles:
Gwo Bon Anj. O grande Anjo bom. É a parte do divino que está em cada um em igual medida e sem tomar forma específica. É o sopro de vida. De certa maneira é um grande equalizador. Todos, não importando a classe ou status, apresentam exatamente a mesma parcela do divino, sem qualquer distinção.
Ti Bon Anj. O pequeno Anjo bom. Esta é a parte imortal da alma. Ela é aquela parte que se confunde com a consciência e com a razão. É a parte que ajuda as pessoas a navegarem pelo mundo tomando decisões e agindo. Na possessão por um Lwa, é a parte que é suprimida ou temporariamente deslocada.
Nanm. A alma propriamente dita. Anima. É como uma energia de vitalidade que anima todo o corpo e que também o mantém em funcionamento correto.
Zetwal. A estrela. Esta é uma parte da alma que está fora do corpo. Acredita-se que sua manifestação seja uma estrela no universo. De alguma maneira, é uma lembrança de que as pessoas são maiores do que seu corpo, do que seus pensamentos e de que esse mundo. Sua luz emanando sobre a pessoa seria algo parecido como a mão do destino. A estrela guarda certos eventos que serão importantes para que a pessoa se desenvolva.
Lwa Met Tet. Este é o Lwa que apresenta uma grande afinidade com a pessoa. Tanto que alguns consideram que nós somos reflexos dos nossos Met Tet na terra. De certa maneira, esta relação explica as características das diferentes personalidades e aponta para uma ligação muito profunda entre o humano e o divino.
Lwa Rasin. Os Lwas “de raiz”. São aqueles que estão junto da pessoa por força de uma forte relação com seus ancestrais. Estes Lwas podem interferir por meio de contatos com os ancestrais. Aqui, a ideia é como se os ancestrais fizessem parte de alguma maneira da própria composição da pessoa.
Wonsiyon. Este termo abarca os espíritos que acompanham o Met Tet. A soma da influência desses espíritos com a do Met Tet determina fortemente diversos elementos do caráter.
A partir dessa exposição, podemos perceber que a alma para o Vodou é, de fato, assunto complexo. Como já foi alertado, alguns praticantes apresentam entendimentos distintos e dirão que a alma é apenas formada por Gwo Bon Anj e Ti Bon Anj, por exemplo. O Vodou não apresenta uma autoridade geral que decreta credos e dogmas e, por isso, estas variações de entendimentos são esperadas. Isto não quer dizer que necessariamente os outros conceitos sejam negados (Zetwal, Nanm etc), mas sim que a compreensão exata de seu papel pode mudar.
Estou certo de que muitos acharão estes conceitos surpreendentes. Particularmente, sempre me encanto com o conceito da estrela e de como, por exemplo, ele se conecta ao Tarô. Acho incrível que uma coisa “de fora” seja considerada tão vital. É um conceito totalmente estranho ao corriqueiro do ocidente e, entretanto, encontra algum respaldo na tradição esotérica ocidental, de alguma maneira. Poderíamos pensar também na astrologia e em como a influência dos astros tem sido alvo constante de fascínio ao longo da história.
Esta noção de alma com múltiplos componentes também lembra fortemente o conceito dos Egípcios Antigos de Alma. Também há alguma controvérsia quanto ao número de partições da alma para aquele povo. Alguns falam em três, outros em cinco e há quem diga que eram nove. De toda a sorte, a alma para os antigos egípcios era também uma construção muito complexa e repleta de camadas.
Acredito que a partição da alma seja um conceito que serve muito bem à integração do ser humano com o universo de maneira mais completa e orgânica. Ora, cada parte dessa alma se relaciona com uma expressão natural específica. A teia que conecta o indivíduo ao mundo natural e ao mundo invisível torna-se mais larga. É um testemunho da importância dos mistérios, tão intrinsicamente ligados ao humano, que fazem parte integral dele. O que isso nos diz de maneira clara é que nós também somos “os mistérios”. Talvez seja uma das mais “altas aspirações da alma” finalmente aceitar e se conectar verdadeiramente a isso.
Essa descoberta é fascinante demais, Eduardo! Que perspectiva rica da alma, sobretudo a ideia da estrela que nos acompanha. Despertou grande interesse por aqui. Obrigada!
Grande Eduardo Regis, Parabéns!