Frater Vameri
Pintura do Frei Capuchinho Bernadino D´Asti que mostra um casamento no Congo por volta de 1750.
Figura retirada de: https://news.yale.edu/2019/03/05/art-historian-cecile-fromont-uncovers-kongos-christian-visual-culture
Hein Vanhee nos lembra que acredita-se largamente que a maior contribuição cultural para o Vodou tenha sido da Costa Oeste Africana, principalmente por conta de grande parte do vocabulário do Vodou atual poder ser traçado até essa região. Entretanto, ele também nos lembra que alguns estudiosos como Blier e Thompson enxergam heranças da África Central no Vodou. Nesse meio, ficamos sem saber exatamente que peso dar a qual herança - se é que preciso se preocupar necessariamente com isso. De toda a sorte, estudos mais recentes, com os de Geggus, apontam para uma maioria de escravos Bantus em São Domingos, portanto, tentar entender a contribuição desses homens e mulheres se mostra fundamental.
Vanhee coloca em disputa a noção de que os elementos católicos no Vodou sejam produto da creolização - ou seja, que sejam um resultado exclusivamente do ambiente de São Domingos. De fato, ele começa essa disputa dizendo que os relatos de Moreau de Saint-Méry sobre o Vadoux ser praticado pelos negros “Arada” no século XVIII levaram diversos estudiosos a acreditarem que as origens do Vodou estariam no Aladá. Porém, Vanhee resgata o relato de Etienne Descourtilz que se empenha em enumerar as nações dos escravos, um pouco após Saint-Méry. Descourtilz vai falar dos Mozambiques e de seu Vaudoux – que seria uma reunião noturna com danças e possessões. Ela presencia uma cerimônia conduzida por um sacerdote chamado de Dompète – uma figura que usa veneno para punir. Vanhee nos lembra que em 1768, uma nova dança similar ao Vaudox surge. Essa dança violenta é chamada de Dom Pèdre, conforme relatado por Saint-Méry. Vanhee também cita o relato de Droun de Bercy que em 1814 identifica o culto “Petro” como o uma sociedade maléfica muito perigosa.
Assim, Vanhee entende que o termo Vaudox, no fim do século XVIII, parece ser usado indiscriminadamente para cultos distintos praticados pelos escravos (destaca-se, entretanto, que não era o único termo utilizado). De fato, o autor entende que os diferentes relatos já revelam que o Vaudox de então era uma coleção ou uma mistura de cultos distintos. Na opinião do autor, a creolização vai agir em cima destes cultos, que vão acabar se unindo de alguma forma. Ele aponta que o primeiro indício disso está no próprio relato de Saint-Méry já que a canção cantada pelos Arada estava na língua Kicongo.
Vanhee argumenta que “Dom Petro” provavelmente é um termo ou nome originário do Congo, já que pela influência católica e Europeia, nomes como Pedro e o título de Dom eram comuns. Assim, o autor já estabelece que a herança da África central é mais poderosa do que apontam as canções relatadas por Saint-Méry. Por aqui ele já começa a destiliar sua teoria.
O autor resgata dados que mostram que desde 1700 o número de escravos que eram envenenados nas plantações era alto. Entretanto, esses envenenamentos não eram obra dos seus senhores, já que muitos relatos revelam os mesmos reclamando do número alto de escravos perdidos dessa maneira. Vanhee conecta isso com a história de Makandal (figura que teria matado diversos homens brancos por meio de veneno) para apontar que mais do que um revolucionário, ele era provavelmente um homem versado nos rituais Congoleses. Uma das possibilidades é que ele – e outros como ele – administrassem veneno para detectar bruxas, coisa comum na África Central naquele tempo.
Vanhee resgata um relato de 1770 que mostra que cultos similares ao "Petro" tinham atividade em Marmelade, especialmente em plantações de café repletas de escravos “Congos”. De fato, estes cultos eram chamados de “Mayombe” ou de “Bila” e aparentemente envolviam o uso de objetos similares aos que são reportados como tendo sido usados por Makandal. O autor relata que testemunhos confirmam o uso de venenos e de provas (literalmente) de fogo nesse culto. Além disso, tanto Makandal quanto outros Dompète carregavam consigo bolsas muito similares aos paquets kongo – o que aponta para uma origem Congolesa.
Hein Vanhee levanta a seguinte provocação: como em um Haiti desprovido de atividades significativas de missionários nos séculos XVIII (principalmente no final)/XIX conseguiu uma hibridização tão forte entre elementos Africanos e Católicos? Está claro aqui que para o autor esse sincretismo não foi um produto apenas do Haiti. Ele nos rememora que pelo fim do século XVIII os missionários Portugueses e Italianos já estavam ativos no Congo há séculos. Não só isso, esses missionários utilizavam largamente a ajuda de locais para suas atividades. Estes ajudantes chegaram a ganhar status diferenciado e até mesmo a realizar jornadas de conversões. Ainda, Vanhee nos dá alguns números que sugerem que o quantitativo desses assistentes era imenso, já que a realeza do Congo chegou a ter 6.000 pessoas e todas elas tinham ajudantes como esses. Além disso, em reinos próximos – como Loango e Kakongo, no final do Século XVIII, missionários Franceses também fizeram muitas conversões. É interessante notar que Vanhee destaca que um dos missionários declara que mesmo convertidos, os nativos continuavam a praticar suas “superstições”. Em geral, o autor nos mostra que no Congo do século XVIII, a população conhecia bem o imaginário e parte da liturgia do catolicismo.
Em São Domingos, documentação do século XVIII, nos ensina Vanhee, vai demonstrar que diversos escravos chegados à colônia já conheciam elementos católicos. De fato, desde 1720 já se sabia que escravos do Congo conheciam o catolicismo. Em 1760, sabe-se que alguns escravos frequentavam a igreja e apresentavam dentre eles alguns com um papel de missionário ou de “sacristão”. Voltando ao Makandal, Vanhee nos conta que após sua execução, o conteúdo de suas bolsas de “feitiço” foi examinado e foram encontrados elementos como água benta, incenso de igreja, hóstias etc. No culto que Vanhee nos apresenta que ocorria em Marmelade também havia o uso de elementos católicos. Ou seja, temos possíveis cultos de influência Congolesa já utilizando de coisas do mundo católico.
Não escapa a Vanhee que se sabe hoje que a maioria dos Haitianos tem raízes Congolesas. Ele liga isso ao fato, por exemplo, de que mesmo sem a presença de sacerdotes ou da Igreja, no Haiti do Século XIX, as pessoas iam às igrejas. Ainda, em localidades distantes, nos conta Vanhee que foram encontrados altares de adoração à Virgem, por exemplo. Em outras palavras - a origem Congolesa no Haiti teria perpetuado elementos católicos, mesmo sem a presença importante oficial da Igreja ou de padres.
Assim, Vanhee vai argumentar que a hibridização de elementos católicos no Vodou funciona como “uma continuação da religião Congolesa do século XVIII”. Talvez possa parecer exagero, mas se pensarmos que Vanhee está considerando os elementos católicos como indissociáveis do Vodou, podemos considerar o argumento dele como válido. De toda sorte, mais do que tirarmos conclusões definitivas, podemos ver claramente que para entendermos o Vodou Haitiano é necessário descascar muitas camadas.
Fonte: Heywood, L. M. Central Africans and Cultural Transformations in the American Diaspora.
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