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Os movimentos do Sol

Frater Vameri


O sol nasce, alcança seu pico, se põe, desaparece e ressurge. Os povos Bantu notaram esse movimento e dele tiraram máximas, lições e símbolos. A famosa Cruz do Congo é uma representação clássica disso que alguns chamam de “Os 4 momentos do sol”. Alguns até mesmo argumentam que essa simbologia e essas noções teriam facilitado a incorporação de elementos cristãos à cosmovisão dessas etnias.


Vejamos a Cruz do Congo, que ilustra a capa desse artigo. Há uma linha que a corta no meio. Esta linha nos interessa muito. É a Kalunga. A Kalunga é conhecida como a fronteira entre o mundo dos vivos e dos mortos (mpemba – de onde deriva o nome pemba, o giz branco). Entretanto ela é mais do que isso. Ela é o mar, um grande rio, ela é o deus dos mortos e ela é o próprio deus supremo. Reparem que o sol nasce na/da Kalunga e morre na Kalunga. A Kalunga, para alguns, é o dinamismo original, a força ígnea primordial que começa tudo e que se espelha em dois mundos.


Quando o sol está no mundo dos vivos, é noite no mundo dos mortos. Porém, quando o sol “morre”, lá é dia e debaixo da água, onde eles “vivem”, a luz os desperta. Assim, é por isso que muitos acreditam que durante a noite no mundo dos vivos, os espíritos dos mortos estão mais ativos e isso explicaria uma das razões dos sonhos serem um canal de comunicação com os falecidos por excelência.


No novo mundo, a Kalunga ganha novos contornos. Em Cuba, por exemplo, no culto conhecido como Palo Monte, ela se torna algo como que a própria massa de mortos, os mortos em si, o mundo dos mortos e é um elemento absolutamente central dessa espiritualidade. Nas macumbas do Brasil, Calunga vira duas: grande e pequena; mar e cemitério. Nunca, porém, perde sua característica fronteiriça, nunca se afasta da ideia de morte.


Meditar sobre o movimento do sol é imperativo para que possamos entender o pensamento dos Bantu. Como já discutimos amplamente aqui, os Bantu tem uma influência forte no Vodou Haitiano, então, mesmo que não seja óbvio em um primeiro momento, essa meditação nos ajudará a compreender o Vodou também. É evidente que o paralelo com a vida humana é inevitável, mas há mais que pode ser extraído disso.


Lembro que discutimos a água em um texto recente. Naquele momento, coloquei que a os Lwas se manifestam por vias aquosas – rios, mares, riachos, fontes etc. A ligação com a Kalunga esclarece melhor essa questão. Embora exista mais nessa relação entre os Lwas e a água, com certeza.

É interessante notar que a Kalunga também é ou foi uma força ígnea. Um fogo aquoso ou uma água flamejante de alguma maneira. Isso infunde a água, repleta de fluidez, com o dinamismo e com a expansão criativa do fogo – tornando essa Kalunga uma força própria da criação e também da reorganização das coisas.


No Vodou, os Lwas são divididos em dois grandes grupos: rada e petwo – e estes são associados, respectivamente, à água e ao fogo. Essa dicotomia é estruturante no Vodou e a Kalunga é o berço dela. Pensando em como Luc de Heusch trata várias histórias dos Bantus e chega a conclusão de que há nelas uma recriação primordial da estação da seca e das chuvas, não é difícil pensar que encontremos aí os movimentos da terra, em complementaridade aos movimentos do sol.

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