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Os doze apóstolos

Frater Vameri



“Deus criou a terra e os animais e depois os doze apóstolos. Porém, os apóstolos eram rebeldes e desafiaram Deus e seus ditames, inflamando sua ira, sendo enviados, então, como punição para a Giné. Eles e seus descendentes são os Lwas. Entretanto, um dos apóstolos rebeldes não aceitou ser enviado para Giné, tornou-se um feiticeiro poderoso e chamou a si mesmo de Lúcifer”.


Retirado de Mcalister (2014), The color of Christ in Haiti.

Aposto que neste exato momento o leitor deve estar torcendo a cabeça e pensando ou que a história não é bem assim ou que não faz sentido. Sentido? Eu pergunto se é possível falar de sentido sem falar de quem conta e quem escuta uma história. E quanto ao fato de não ter sido bem assim – quem disse?


A história nos conta claramente que os Lwas foram feitos logo no início da criação e antes do homem, por sinal. Afinal, esses doze apóstolos não podem ser compreendidos como outra coisa senão doze princípios – talvez astrais – como o zodíaco. Ou talvez sejam 11, pois um se recusou a ficar e se torna lúcifer. De toda a sorte, sabemos que esses apóstolos são geniosos – ao ponto de desafiarem Deus.


Ao mesmo tempo, parecem ter se conformado com seu exílio na Giné. É a exceção que comprova a regra quem nos diz isso – Lúcifer. Se ele se rebelou mais uma vez e dominou para sai a arte da feitiçaria e passou a ensinar ela para os homens, então, é claro, os outros assim não fizeram não por incapacidade, mas por vontade.


Mcalister nos lembra de que Lúcifer é o príncipe do mundo e que nossa existência é, portanto, marcada pela sua inegável influência. Essa seria a razão da vida estar sempre repleta de reviravoltas, sortilégios, feitiços e de mazelas – a mão pesada de Lúcifer sobre o tear da existência humana. Seria tentador associar Lúcifer ao Judas Iscariotes, mas algo não encaixa.


Há uma ausência notável nessa história. Onde estará Jesus? Sem Jesus, sem traição, sem Judas traidor. Talvez Jesus não esteja nesse mito, pois que sentido faria ter um redentor enquanto ainda não há o que redimir? Os humanos ainda virão e ainda terão sua odisseia existencial.


Essa ausência acena para a falta de centralidade de Jesus. Sendo ele apenas mais um habitante desse vasto mundo espiritual. Os santos, apóstolos e toda a sorte de personagem bíblico e religioso tomam conta do palco e revelam que suas hagiografias e seu imaginário de mediadores são valiosos, tanto ou mais do que uma figura que tirará pecados – afinal, que pecados? Está aí algo que não se encaixa bem na cosmovisão do Vodou.


Jesus, entretanto, meio-homem, meio-deus, é uma ponte encarnada e se o poteau mitan pode ser visto como o falo de Osíris, que Isis resgata das águas profundas e que a fertiliza para o nascimento da prole, este poste pode ser também a própria cruz (a encruzilhada) de cristo, que liga o homem ao invisível.


Precisamos pensar também nesse Deus que exila os apóstolos na Guiné. Teria sido exílio ou teria sido uma “missão”? É oportuno lembrar que Deus não costuma se ocupar de assuntos corriqueiros, deixa isso com os Lwas e outros intermediários. Talvez a história toda nos guarde outra mensagem, então – que o caráter e o ímpeto dos apóstolos faziam deles as personagens perfeitas para a tarefa de mediar à criação humana e para coordenar os giros do mundo.


Essa história que Mcalister nos conta aceita muitas interpretações, mas não falha em dizer claramente o seguinte: ninguém pode jamais ler a mesma frase, mesmo de um livro como a bíblia.

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