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Mito e Crença

Frater Vameri


Imagem de Gordon Johnson por Pixabay.


Eliade destaca que é difícil definir precisamente o que seria o mito (ELIADE, A estrutura dos mitos, página 12). Isto, pois, o mito é, claro, muito rico e complexo. Entretanto, Eliade arrisca uma definição: “o mito conta uma história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso dos começos”. Ora, com isso parece claro que para Eliade, o mito é um amontoado de acontecimentos que ocorre em um tempo que ninguém conheceu (a não ser através do próprio mito).


Ainda, ele destaca que o mito sempre está preocupado em descrever um início. O mito então é uma “história fundadora”, que resgata as origens e ajuda a dar prumo a toda uma cultura. Ele também destaca que os personagens do mito são “sobrenaturais”. Isto não quer dizer que não possam ter sido mulheres ou homens, mas mesmo que fossem, por estarem nesse tempo “deslocado do tempo” ou “além do tempo”, citando Pierre Clastres, estão revestidos de qualidades além das ordinárias.


O autor em texto sobre Imagens e Símbolos, destaca também que o mito pertente “à substância da vida espiritual” e que não pode ser apagado (ELIADE, Imagens e Simbolos, página 7). Ora, se o mito ocorre no “tempo além do tempo”, ele é como história fundadora inacessível. Não pode ser modificado. Entretanto, a sociedade (da qual o mito faz parte) é de certa forma uma manifestação do mito e, assim, mesmo inalcançável, o mito está presente e é feito presente por rituais e atos que são sacralizados. É o tempo circular.


É possível até pensar que as sociedades são resultados de seus mitos e isso não apenas em uma dimensão religiosa, mas mesmo para atividades absolutamente rotineiras. Assim, o ato de caçar, por exemplo, não seria nunca diferente da reconstrução da caça que os ancestrais conduziram no mito, por exemplo. Isto concorda com o que o autor afirma sobre o mito ter uma função e não ser uma mera construção imaginária, mas sim algo que atenda a uma necessidade (ELIADE, Imagens e Símbolos, página 8). Não uma necessidade material, mas sim estruturante do ser e da sociedade. Isto também sugere que há um esforço contínuo de sacralização do profano através do mito. Aliás, a dialética sacrado contra profano também se encaixa aqui, já que o mito, como sagrado, também só pode ser compreendido através do fato de que não se está mais naquele “tempo fabuloso”.


De fato, Eliade revela que os mitos são sempre verdadeiros. As sociedades baseadas neles jamais os entendem como anedotas ou apenas meras histórias. O mito é o organizador do universo destas sociedades e se o universo aí está ele é a comprovação definitiva de que o mito só pode ser real (ELIADE, A estrutura dos mitos, páginas 15-16).


Os mitos têm ocasião e propósito de serem transmitidos. Eliade diz que isto ocorre durante as iniciações, ou seja, são passados aos jovens para que eles entendam como os antepassados agiam e como o universo está organizado e assim possam fazer parte devidamente dessa mesma organização. Eliade chama a atenção para o fato de isso dar ao mito uma qualidade esotérica, passada por ocasião ritualística e que exige algum grau de segredo (ELIADE, A estrutura dos mitos, página 20). Os mitos quando reencenados e recitados parecem garantir que o universo continue organizado da maneira que foi no “tempo além do tempo” e pelos antepassados.


É como diz Maya Deren, em seu estudo elegante sobre o Vudu Haitiano: “O mito é o discurso crepuscular de um idoso para menino” (DEREN, M., 2004 página 21. Tradução nossa). Com isso, ela quer dizer que o mito é a maneira do ancião transmitir aos mais novos seu conhecimento ou ainda de coloca-lo de maneira adequada como um membro ativo e funcional da sociedade.


Ao passar o mito por uma iniciação, se dá poder ao neófito, pois agora ele conhece a origem das coisas e conhece os mecanismos pelos quais as coisas funcionam. Eliade entende que isso é suficiente para que alguém manipule o universo (ELIADE, A estrutura dos mitos, página 23). Aqui temos que claramente o mito não é só uma história, mas o mito é toda a história, de certa maneira.


Para Eliade, experimentar o mito, seja por uma iniciação ou até por celebrações costumeiras sazonais (imagino) é uma maneira de sentir algo que não se sente corriqueiramente. Isto, para o autor, é o suficiente para garantir ao mito uma qualidade religiosa e sacra, já que se distingue absolutamente de tudo que é ordinário. Na vivência do mito, acessa-se o “tempo anterior inacessível” e se comunga com os “seres sobrenaturais” (ELIADE, a estrutura dos mitos, página 23). Sente-se parte da fundação das coisas então e são reforçados os valores que o mito carrega.


Comparando de maneira grosseira: o que seria então a celebração, por exemplo, de uma missa? Onde o Padre reencena passagens da vida de Cristo e faz o fiel participar disso (pela eucaristia, por exemplo)? Uma maneira de viver o mito. A igreja então se torna um espaço sacralizado por aquela encenação e fica claro que o que ocorre ali não guarda possível semelhança com nada que poderia ocorrer do lado de fora.


Eliade destaca com propriedade sobre o homem moderno, que mesmo que este despreze o mito, está rodeado de mitos “decadentes” e que sua imaginação alimenta-se constantemente destes mitos (ELIADE, Imagens e Símbolos, página 15). Ou seja, o mito seria de fato, imortal. Ainda, o mito com sua qualidade de sagrado, daria ao homem, por mais que este rejeite, sempre algo próximo a uma experiência de ruptura com o ordinário, mesmo que apenas sob a égide da imaginação (e com isso não quero subestimar a imaginação).


Sobre o símbolo, Eliade, em seu “Tratado de História da Religião” diz que “o símbolo prolonga a dialética da hierofania”. Ou seja, que o símbolo é um instrumento capaz de irradiar sacralidade, quando ligado a alguma manifestação sagrada (ELIADE, M. 1997. Página 549). Não só isso, Eliade entende que as hierofanias, em geral, podem se tornar símbolos que vão continuar com seu poder sacro, que serão então a própria manifestação do sagrado (ELIADE, M. 1997. Página 550). Logo, o símbolo quando passado a uma pessoa é similar ou o mesmo que viver uma experiência sagrada. Percebemos claramente, que para Eliade, o símbolo e o mito possuem um papel semelhante: ambos são capazes de tirar o homem do seu cotidiano e inseri-lo em um ambiente diferenciado, que é entendido como sagrado.


Assim, é evidente que Eliade entenda que o símbolo, como o mito, tem uma qualidade espiritual evidente (ELIADE, Imagens e Símbolos, página 7). Como o símbolo, para este autor é algo inerente ao ser humano e que alcança camadas da existência que são inacessíveis por outros meios (ELIADE, Imagens e Símbolos, página 8), parece claro que o símbolo é possivelmente um “transportador” que ou resgata ou insere “sensações” e “sentidos” em partes escondidas ou pouco disponíveis do homem e poderia ser o que permite à experiência religiosa gozar de suas incríveis consequências e impressões. O mesmo, claro, também serve para o mito, pois é difícil dizer do mito que não seja um tipo específico de símbolo ou então que contenha em si vários símbolos, formando um símbolo que abarca tantos outros. De toda a sorte, parece claro que mito e símbolo apresentam naturezas correlatas ou geminadas.


Aqui, vale resgatar o discurso sobre os “mitos semi-esquecidos” que rodeiam o homem, pois há também, nesse meio, os “símbolos abandonados”. Eliade diz que a vida contemporânea secularizada modificou a vida espiritual (ELIADE, Imagens e Símbolos, página 14). Claro, sua afirmação faz todo o sentido. Entretanto, ele entende que a imaginação está embebida nesses símbolos, tornando, de certa maneira, impossível ao homem fugir de suas influências.


Ora, isso é muito interessante, pois sugere, que os mitos e símbolos, mesmo adormecidos no subconsciente ou disfarçados de anedotas ou como quer que ou se apresentem ou persistam ainda são capazes de comunicar algo de uma experiência religiosa ou sagrado, mesmo que, talvez, diluído. Eliade diz que isso pode ser o impulso necessário para o homem renovar sua vida espiritual (ELIADE, Imagens e Símbolos, página 15). Entretanto, isso também quer dizer que a secularização falhou como projeto. Símbolos e mitos então, além de tudo, garantiram a esporulação da vida espiritual e da vida religiosa.


Ainda, parece-me que o mito e símbolo tem a função de borrar as fronteiras entre o religioso e o profano. Não só pela sua capacidade de sacralização específica. Eliade nos lembra que para “o pensamento arcaico, uma tal separação entre “espiritual” e “material” não tem sentido: os dois planos são complementares” (ELIADE, Imagens e Símbolos, página 177). Isto ele traz à tona em uma discussão sobre a origem dos símbolos, combatendo a ideia de que um símbolo surja da mera observação de fenômenos naturais, já que o símbolo comunicaria sempre algo além e inacessível pela simples observação (ELIADE, Imagens e Símbolos, página 177). Assim, não seria absurdo pensar que mesmo no homem secularizado, os símbolos permeiem facetas profanas da vida e que possam sim confundir essa separação tão prezada atualmente. É mais uma evidência de que símbolos são propagadores incessantes de uma espiritualidade ou religiosidade adormecida. Se este esporo germinará, passa a ser irrelevante. O esporo em si já causa alterações na vida do homem.

Bibliografia:

DEREN, M. 2004. Divine horsemen. The living Gods of Haiti.

ELIADE, M. Imagens e Símbolos. Ensaios sobre o simbolismo mágico-religioso. 1996.

ELIADE, M. Tratado de História da Religião. 1997.

ELIADE, M. A estrutura dos mitos. In: ELIADE, M. Aspectos do Mito.



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