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Foto do escritorEduardo Regis

Erzulie Dantor e a voz das mulheres

Frater Vameri




É bem verdade que a história não favorece as mulheres – geralmente contada pelo ponto de vista dos homens, ela tende a apagar essas personagens. Esse fenômeno é ainda mais destacado no caso de mulheres negras e escravas. Entretanto, relatos acerca da história Haitiana revelam que as mulheres não eram coadjuvantes. Na discussão presente, trago o artigo de Kingsbury e Chesnut, que tenta demonstrar isso fazendo um paralelo com Erzulie Dantor.


Os autores citam evidências que as mulheres negras escravizadas em São Domingos eram uma grande fonte de resistência ao regime colonial. De fato, eles vão além e entendem que a participação dessas mulheres no Vodou – que, eles lembram bem, era um culto proibido na colônia – revela que elas eram realmente guerreiras.


Aqui é preciso considerar uma pesquisa recente que surgiu no Brasil que revela que a contribuição na constituição genética do Brasileiro é significativamente negra e indígena pela parte materna e europeia pela parte paterna. A interpretação é clara - a violência sexual foi determinante na composição dos Brasileiros. Trago isso à tona, pois os paralelos entre o sistema escravagista Brasileiro e Haitiano são claros. Neste sentido, podemos supor com muita segurança que o mesmo acontecia lá. Portanto, ao considerarmos a contribuição feminina no Vodou ou nas revoltas, precisamos considerar como o contexto era mais cruel para elas do que para os homens. Tendo isso em mente, ao invés de apagarmos essas figuras, nossa tendência será exaltá-las.


Um dos argumentos levantados por Kingsbury e Chesnut é de que a possessão espiritual por figuras como Erzulie Dantor dava a essas mulheres uma autoridade e também experimentarem para si um contexto social que lhes era negado na vida cotidiana. Ora, aqui já podemos supor que ao se encontrarem na comunidade espiritual, essas mulheres também eram encorajadas a agir na vida profana – ou seja, espíritos como Erzulie Dantor (forte opositora da opressão) mais do que permitirem mera catarse religiosa, transformavam efetivamente a vida das escravas na colônia de São Domingos.

Isso pode ter sido uma das razões pelas quais os autores encontram diversos registros de punições regulares contra escravas por atos de rebeldia. Claro que não é possível excluir que o sentido seja o inverso – ou seja, que as mulheres, rebeldes, vão encontrar no Vodou uma maneira a mais de exercer sua revolta justificada. De toda a sorte, ao invés de ficarmos tentando descobrir o que veio primeiro, talvez seja melhor considerarmos se as duas coisas não faziam parte de um sistema único, com uma coisa sustentando a outra.


Um ponto que é muito discutido por Kingsbury e Chesnut é a da gravidez. As mulheres escravas eram geralmente vistas como problemáticas, pois a gravidez atrapalhava o trabalho. Uma prática comum era a de forçar o aborto por meio de violência física. Quando a gravidez se completava e nascia uma criança, era comum que fosse logo vendida ou separada da mãe. Ou seja, a maternidade era um direito e uma experiência frequentemente roubada dessas mulheres. Por isso, um espírito como Erzulie Dantor – o arquétipo da mãe vingativa e protetora – deve ter encontrado apelo enorme entre essas mulheres.


Uma coisa que os autores destacam e que é muito interessante é que as mulheres também fazem Erzulie Dantor. Podemos interpretar isso além do social ou da construção dos deuses pelos homens. De fato, Erzulie Dantor vem possuindo mulheres no Vodou há tempos e essas possessões, mais do que dar corpo a um espírito, dão substância à ideia do espírito (não que apenas mulheres sejam possuídas por Dantor). A mensagem é influenciada pelo meio. Uma coisa é ler sobre Erzulie Dantor em um livro, outra é ver Erzulie Dantor montar uma mulher em uma cerimônia. Essas possessões são, de fato, fundamentais na construção de qualquer Lwa.


Os autores, indo além, vão sugerir que as mulheres irão colocar em Erzulie Dantor boa parte de suas impressões e de sua resistência. De fato, chegam a citar o fato de Dantor ser muda como um símbolo claro da opressão brutal que essas mulheres sofriam. A perda da voz então seria uma clara analogia a perda de qualquer sentido de poder e de humanidade.


Assim, há muito que ser explorado para que possamos entender melhor o papel das mulheres na formação do Vodou e também do Vodou na construção de feminino Haitiano. Ao nos debruçarmos rapidamente sobre esse paralelo com Erzulie Dantor já podemos, de imediato, ganhar novas dimensões e compreender melhor a dinâmica do próprio Vodou.

Referência:

Kingsbury, K., Chesnut, R.A. In Her Own Image: Slave Women and the Re-imagining of the Polish Black Madonna as Ezili Dantò, the Fierce Female Lwa of Haitian Vodou. Int J Lat Am Relig 3, 212–232 (2019). https://doi.org/10.1007/s41603-019-00071-5

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