Frater Vameri
Imagem de Anrita Krause por Pixabay
Geggus em um curioso trabalho sobre o Vodou no século XVIII resgata o testemunho de Moreau de Saint-Méry sobre um “culto extático às cobras” chamado de Le Vadoux e que era muito próprio de um grupo de falantes de Fon que eram conhecidos como “Arada”. Como Geggus mesmo comenta, hoje se acredita que grande parte da influência do Vodou tenha vindo de falantes de Fon. Além disso, uma das “nações” do Vodou contemporâneo mais famosas é chamada de Rada e percebe-se claramente como este nome pode ser originário de “Arada”.
O relato de Moreau continua dizendo que o Vadoux era praticado em sua forma mais autêntico longe de olhos estranhos e que envolvia um sacerdote e uma sacerdotisa que mediavam as interações entre os fiéis e uma “cobra viva divinizada”. As cerimônias, de acordo também com os relatos de Moreau, eram caracterizadas por transes e por danças. Além disso, ele relata que se tratava de um culto de iniciação. Sobre novos membros, comenta brevemente que eram recebidos por um canto, que Geggus identifica como sendo Kikongo, uma língua do grupo Bantu.
Aqui temos um ponto interessante: já no final do século XVIII testemunhamos a integração de culturas diferentes neste culto.
É curioso também notar que este canto parece ser um apelo a uma entidade chamada de Mbumba. Há disputa entre os acadêmicos acerca do significado exato de Mbumba neste contexto, mas Geggus ensina que Mbumba Luangu era uma deidade serpente da sociedade Bakimba e que píton nesta língua seria mboma e mbámba, um tipo menor de cobra. Novamente, as peças parecem apontar para um culto às serpentes e parecem se encaixar com Le Vadoux.
Ainda sobre Mbumba, o próprio Geggus revela que em outras partes do Congo esta era a denominação para o deus Supremo (Nzambi, como é mais conhecido). Ele ainda destaca Mbúmba Mamba, uma deidade aquática do Palo Monte cuja uma de suas representações é a de uma cobra. Ou seja, embora exista alguma margem para discordância nessa interpretação de Mbumba, a figura da serpente continua surgindo.
Geggus apresenta ainda o relato de um fazendeiro, este de 1814, no qual ele reporta um canto também em língua do Congo. Além disso, esse fazendeiro também conta de cerimônias secretas de Vadou, nas quais havia o culto a uma cobra, dois sacerdotes e transes e danças.
O culto à cobra, claro, nos remete imediatamente às divindades serpentinas como a Serpente Dan no Daomé (terra dos falantes de Fon). Também é um apontamento evidente para Damballah e Ayida-Weddo os Lwas serpentinos mais famosos do Vodou Haitiano. Com essas associações em mente, é difícil pensar que Le Vaudoux e também o Vadou não tenham relação com o Vodou contemporâneo.
De Heusch nos conta que diversos Lwas da nação Petro tem sua origem no Congo, como Simbi, que originalmente seriam espíritos que são encontrados próximos a corpos d´água. Além disso, ele ensina que a religião tradicional Congolesa (principalmente da região ao sul do rio Congo ou rio Zaire) é marcada pelo transe. Novamente, temos evidência de que o Voudou é fruto de uma diversidade cultural extensa.
Poderíamos seguir com a discussão que De Heusch propõe sobre a razão pela qual certos espíritos aquáticos como os Simbi são associados ao fogo na nação Petro. Entretanto, podemos nos contentar apenas em entender uma questão pontual. Em resumo, o autor acredita que esta aparente “contradição” tenha sido um artefato da “oposição” entre Rada e Petro. Sendo Rada uma nação de espíritos mais calmos e aquáticos por causa de Damballah, a nação Petro teria ficado com o fogo para compor a dinâmica de equilíbrio.
Em 1973 De Heusch nos conta que conheceu um templo na região norte do Haiti no qual os Lwa do Congo não estavam submetidos à dicotomia Rada x Petro. De Heusch conta de um culto totalmente dedicado aos Lwas do Congo e no qual a estrutura eclesiástica era bem distinta dos templos de Vodou mais usuais.
Não nos cabe analisar aqui com detalhes a estrutura deste templo, mas apenas observar como este é uma testemunha da diversidade originária do Vodou contemporâneo. De fato, este pequeno ensaio que é, na verdade, uma breve síntese de algumas ideias colocadas pelos autores citados tem um só objetivo: chamar a atenção para o fato de que o Vodou é multifacetado e que para se entender suas nuances é preciso muito estudo (além, claro, de vivência).
Referência
Geggus, D. Haitian Voodoo in the Eightennth Century: Language, Culture, Resistance. Jahrbuch für Geschichte von Staat, Wirtschaft und Gesellschaft Lateinamerikas 28 (1991): 21-51.
De Heusch, L. Kongo in Haiti: A New Approach to Religious Syncretism. Man. 1989. 24(2). 290
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