Frater Vameri
Nesta semana, gostaria de fazer uma nota sobre o artigo de José Renato Baptista sobre a cerimônia de Bois Caiman. Esta cerimônia foi um encontro político e religioso de escravos que teria ocorrido em 14 de agosto de 1791, em Bois Caiman, na Ilha de São Domingos e que teria disparado os eventos da Revolução Haitiana.
José abre o artigo com um relato curioso de seu tempo de trabalho de campo no Haiti (ele é um antropólogo Brasileiro). Seu relato conta uma breve conversa entre ele e uma informante, na qual a mulher fala que Boukman (o líder da cerimônia de Bois Caiman) teria feito um pacto com o diabo para libertar o Haiti. É preciso contextualizar esta passagem (e José o faz) revelando que o protestantismo cresce rapidamente no Haiti. Assim, aqui temos uma primeira provocação interessante: como conjugar a visão protestante com o imaginário de todo um país fundado miticamente pelos desdobramentos de uma cerimônia Vodou?
Aqui já podemos também fazer um paralelo necessário com o Brasil. Como o Brasil contemporâneo olha para a construção do país? Sem surpresas, sabemos que a herança Africana é vista com maus olhos por uma parcela significativa da população. Esta pergunta ficará sem resposta neste pequeno ensaio. Serve para reflexão.
José retoma a discussão sobre a Revolução Haitiana apontando que Sidney Mintz considera que a Revolução Haitiana foi a mais impressionante do fim do século XVIII, mais ainda do que a Francesa e do que a Americana. O motivo para isso não poderia ser outro: foi realizada por escravos.
O autor argumenta que o Vodou é “uma espécie de idioma comum através do qual foi possível integrar as massas escravas na luta comum pela liberdade”. Ou seja, José está defendendo que o Vodou, como sistema religioso e ethos, foi capaz de criar uma solidariedade tamanha que garantiu o sucesso da revolução. Ora, imediatamente nos lembramos de Durkheim e de seu conceito de “solidariedade mecânica”, no qual uma equalização ou correspondência significativa de condições, elementos e de características sociais garante que a sociedade se mantenha coesa.
José então começa a explorar o papel de Bois Caiman, uma cerimônia que está sempre em um estado fronteiriço – entre o real e o imaginário – na revolução. A cerimônia em si teria sido uma reunião de escravos rebeldes liderada pelo Jamaicano Boukman (um Houngan ou Ougan) e também coordenada por uma Mambo. A cerimônia teria marcado um grande pacto ou acordo entre os escravos e os Lwas por um povo e por uma terra livre.
O autor coloca que Bois Caiman funciona verdadeiramente como um “mito no sentido antropológico”, já que serve para trazer ao presente (o tempo todo) um tempo além do tempo e que está sempre junto do povo. Nesse sentido, José entende que o Vodou e também Bois Caiman estão o tempo todo sendo reinterpretados, já que são coisas sempre presentes. Sempre ganhando novos significados.
O artigo também costura um episódio em Paillant, no qual quatro pessoas foram assassinadas e as dez testemunhas que sobreviveram foram hospitalizadas, todas incapazes de falar, ou seja, mudas. A explicação local foi que a chacina tinha ocorrido pela ação de um djab, um espírito. José conta que a explicação fantástica foi prontamente ignorada pelos jornais, mas que foi discutida pelo povo e veiculada em debates de rádios. O ponto de José é que essa explicação fantástica não pode ser considera irreal, pois é experimentado como verdade pelas pessoas.
O paralelo entre Paillant e Bois Caiman então se descortina. Para José, Paillant é uma expressão do mito sempre presente de Bois Caiman e até mesmo uma ressignificação mais contemporânea do mesmo. É assim, acredito, que o autor quer dizer que o povo Haitiano vive o Vodou constantemente como expressão máxima de sua autenticidade. Mesmo os que são protestantes ou que não se envolvem diretamente estão imersos nessa matriz e vivem essa mesma realidade. O fato de o Haiti ser o filho de um mito Vodou diz muito sobre suas características e nos obriga a entender o país se quisermos entender o Vodou.
É um caso extraordinário o deste país que nasce de uma revolução de escravos e que tem seus pés fincados em sua espiritualidade própria. Nos termos de Sidney Mintz e de Price, que o próprio José cita, esse hibridismo que deu origem ao Vodou e ao Haiti é algo totalmente original e próprio. Não se pode olhar para o país e sua cultura como meras transformações ou variações “menores” da África. O mesmo deve ser dito do Vodou.
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