Frater Vameri
Figura retirada de: https://www.geledes.org.br/criacao-do-mundo-segundo-a-tradicao-bantu/
Quando trato do Vodou Haitiano nestes textos, considero a perspectiva de Jean Price-Mars de que o Vodou é algo genuinamente do Haiti. Entretanto, ao contrário do que poderia parecer, isso não quer dizer que devemos eliminar qualquer influência não Haitiana da equação. Aliás, isso quer dizer necessariamente que devemos entender a formação do Haiti para entendermos bem o Vodou. A tarefa de entender o Haiti sem entender algo de África provavelmente será infrutífera.
A África, entretanto, que precisamos ver não é aquela estereotipada pelo ocidente. A África é grande, complexa, variada e dinâmica. Longe de ser um bloco de terra estático no qual habita um povo com um grande quantitativo de coisas em comum, o continente Africano foi e é palco de interações sofisticadas e de etnias únicas. Portanto, entender África é uma tarefa hercúlea. Podemos então fazer um recorte: vamos entender um pouco da África que contribuiu para a formação do Haiti. Novamente nós encontramos um trabalho árduo.
Sabemos que os Africanos trazidos ao Haiti foram em sua imensa maioria escravos. Mulheres e homens forçados a um deslocamento desumano. Dentre muitas características do tráfico negreiro, temos algumas que representam alguns problemas para um estudo da parcela Africana constitutiva do Haiti: havia muito mercado negro; os escravos não eram propriamente identificados por marcadores de origens; e a documentações não são tão boas quanto poderiam ser. Assim, reconstituir as etnias de Africanos que foram parar no Haiti é difícil.
Há a ideia dentro do Vodou Haitiano de que a maior parte da herança Africana do Vodou vem dos Fon. Os Fon eram uma denominação étnica de povos que viviam no Aladá e no Daomé, por exemplo. Há várias razões para essa ideia ter se perpetuado. Uma delas tem a ver com a própria palavra Vodou – que teria vindo do Voudon dos Fon. Outra tem a ver com os Lwas, como Damballah, cujo nome alguns acham que viria de Dan do Aladá. Entretanto, algumas teorias vão apontar no próprio termo Lwa influência de outras etnias. Entendem alguns estudiosos que Lwa venha da mesma origem que Babalao – pai do mistério ou pai do segredo na língua dos Iorubás.
David Geggus fez um estudo muito interessante que poderá nos ajudar a entender alguns pontos. Ele pegou dados de aproximadamente 4.000 viagens de tráfico negreiro conduzida por Franceses. Lembremos que o Haiti sofreu primeiro colonização Espanhola e depois Francesa, sendo que indubitavelmente é a Francesa que mais nos interessa. Geggus descobriu que a maioria dos escravos que foi deslocada ao Haiti eram de origem da África Central, ou seja, das etnias Bantus.
Geggus observa que a maioria desses escravos da África Central vai chegar ao Haiti pelo Século XVIII e que iam parar principalmente nas plantações de Café – que ficavam em regiões de montanha. A idade e sexo dos escravos “Congos” (Bantus) aparentemente, de acordo com o que Geggus conclui, não eram muito favoráveis para a preservação de sua cultura, quando comparados aos Fon e aos Iorubás. Ele também alega que é possível que os Fon e os Iorubás, por virem de fortes estados Africanos, tenham dominado os demais nas plantações.
Geggus também acha que o destaque dado ao culto aos ancestrais pelos Bantus pode ter afetado sua cultura. Está claro disso que ao serem deslocados e ao perderem o contato com sua terra natal, o culto aos ancestrais tenha sido fortemente dificultado. Assim, os espíritos Fon e Iorubás podem ter apresentado mais apelo até mesmo para essas pessoas de origem Bantu.
Porém, Geggus também nos dá evidências que a cultura dos “Congos” não tenha sido tão apagada assim. Cantos de Vodou registrados no período colonial hoje são reconhecidos como tendo sido em língua Kicongo dos Bantus. Além disso, nas montanhas do Haiti o culto Petwo é também chamado de Lemba – que vem da região do Congo.
Lembro-me bem do livro do João do Rio chamado “As Religiões do Rio” onde (salvo falha de memória) há o relato de uma pessoa que alega que os Bantus não tem cultura e copiam tudo dos outros negros. No Brasil, principalmente, essa noção se perpetuou. É verdade que algumas autoridades como John Thornton entendem que, de fato, a espiritualidade dos Bantus era, de alguma maneira, mais plástica. Entretanto, isso não quer dizer de maneira alguma que ela fosse menos complexa ou menor.
Acho fundamental que os interessados e praticantes do Vodou Haitiano se dediquem – mesmo que timidamente – a um namoro com os trabalhos acadêmicos. Acho que a discussão trazida por esse texto revela a razão. Temos que é claro que, em geral, a herança dos Bantus é frequentemente subestimada. Talvez resgatar um pouco dessa parcela me interesse especialmente como Brasileiro, já que há diversas influências dos Bantus importantes aqui que podem se percebidas, por exemplo, em cultos como a Quimbanda. De toda a sorte, quanto mais procuramos entender sobre as etnias que compuseram o Haiti e o Vodou, melhor entenderemos o próprio Vodou.
Este artigo conversa com o seguinte:
https://www.otoa-lcn-brasil.com.br/post/cobras-e-congo-uma-discuss%C3%A3o-r%C3%A1pida-sobre-a-diversidade-do-vodou-haitiano
Sou umbandista e tenho lido a algum tempo - após ouvir uma informação dada por determinada entidade - trabalhos acadêmicos sobre a influência bantu na formação das religiões afro-americanas, e muitas coisas passaram a fazer mais sentido em minhas práticas. Parabéns pelo texto. Aguardo ansiosamente o próximo.