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Foto do escritorEduardo Regis

A Terra e seu espírito

Frater Vameri



Pintura representando nativos do Caribe.


O Professor Patrick Bellegarde-Smith me ensinou algumas coisas, todas importantes. Dentre estas, uma das mais interessantes é a ideia de que a terra do Haiti ainda pertence aos seus habitantes originais (os índios Taínos, Aruaques e Caribes) e que os Haitianos, ao morrerem, vão para Ginen – para a África, pois voltam para sua casa e deixam a casa dos seus “anfitriões”. Essa noção guarda lições importantes de identidade e revelam as feridas abertas não só da diáspora, mas também do genocídio. Gostaria de explorar um pouco dessa questão neste artigo.


Primeiro, gostaria de falar sobre pessoas que habitam uma terra estrangeira e como essa dinâmica se apresenta, claro, dentro da perspectiva do Vodou, mas não necessariamente dentro apenas da perspectiva Haitiana. Alguns estranharão agora, pois eu costumo frequentemente reforçar o quão é importante entender o Haiti para entender o Vodou, mas eu garanto que não trairei essa minha máxima.


O deslocamento forçado de Africanos para o Novo Mundo foi algo brutal. Não há como definir de outra maneira e é sempre bom – em tempos de relativizações e revisões históricas perigosas – relembrar isso. De maneira geral, podemos considerar que as diferentes espiritualidades Africanas (e que também a maneira de viver, por consequência) que vieram parar pelas Américas apresentavam elementos fortíssimos de conexão ao mundo natural. Então, ao chegarem aqui e ao começarem a reorganizar suas práticas espirituais, estas pessoas se viram confrontadas com a personalidade da terra.


E o que isso quer dizer? Em termos práticos, podemos imaginar que certos materiais com os quais eles estavam acostumados aqui não existiam – como determinadas espécies vegetais. Isso pediu por adaptações. De um ponto de vista mais sutil, os espíritos da terra começaram a se apresentar e essas pessoas tiveram que aprender a lidar com eles. Além disso, os espíritos que vieram com eles também se viram em um local novo e talvez com certas qualidades levemente diferentes.


A terra, aqui, sabemos, não estava desocupada. No Brasil, os índios já estavam e ainda estavam presentes. No Haiti, os Taínos, Caribes e os Aruaques já haviam sido praticamente exterminados quando os Africanos chegaram, mas sua presença ainda podia ser sentida. Novamente, é Bellegarde-Smith quem entende que o Vodou Haitiano recebeu um influxo de influência espiritual destes nativos. Bellegarde-Smith entende que a troca presencial entre os nativos de São Domingos e os Africanos tenha sido muito pequena, pois quando os Africanos chegaram, os índios haviam sido eliminados quase todos.


Entretanto, a terra parece guardar memória. A terra mesmo, não só a gente. Os rios, os campos, as lagoas, as montanhas, tudo isso tem espírito, são habitados por espíritos e preservam memória. Assim, mesmo que o homem se vá, os lugares e seus habitantes espirituais ficam. Lembro-me particularmente da palestra online do Marcello Martins do Sangue do Vale falando sobre sua prática Asatru no Rio de Janeiro e dizendo que foi inevitável para ele e para seus pares saudarem os espíritos do local (como caboclos d´água) com coisas que eles gostam (café e tabaco etc). Vejam a palestra dele aqui:



Se a terra é repositório de lembranças e de espíritos, faz sentido que quem quer que esteja nesta terra, nativo ou não, e que trabalhe essa conexão, sinta a força dessa memória e a presença desses espíritos. Então, parece claro que qualquer espiritualidade que seja praticada longe de sua terra natal sentirá mudanças. Ainda, por mais que se tente resgatar alguma prática espiritual originária em terras distantes, o caráter da terra será imposto de alguma maneira.


Chegamos então a um ponto importante. Vemos que na comunidade do Vodou, há pessoas que protegem com bastante vigor a relação dessa espiritualidade com o Haiti. De tal maneira, que defendem que determinadas iniciações do Vodou só possam ocorrer no Haiti. Como já coloquei, concordo que a relação seja fundamental, mas não necessariamente estou de acordo com tudo que esse grupo defende. Nesse ponto, é claro que é preciso respeitar as variadas opiniões e precisamos entender que essa proteção acerca do Vodou também pode nascer da história de opressão que marca a trajetória do Haiti.


De toda a sorte, o Vodou Haitiano se espalhou. A diáspora dos Haitianos é significativa. Muitos Haitianos foram procurar abrigo em países estrangeiros e com isso levaram o Vodou e montaram comunidades e templos que atraíram, claro, a comunidade local. Agora, os lwas estavam se manifestando e aparecendo em terras estrangeiras. A questão é como isso se dá. Será que o Vodou praticado fora do Haiti é necessariamente igual ao praticado no Haiti? Bem, considerando que o Vodou é extremamente heterogêneo até dentro do próprio país de origem e que apresenta variações de casa para casa, parece claro que nascerão diferenças no Vodou praticado fora do Haiti. Agora resta saber se nessas diferenças haverá algumas que nascem da terra estrangeira. Será que o Vodou Haitiano praticado no Brasil apresenta alguma Brasilidade? Por experiência digo que sim.


Voltando a um ponto mais inicial e partindo para o fechamento desse pequeno artigo, vejam então que na formação das espiritualidades do Novo Mundo temos duas faces cruéis: a matança e escravidão de nativos e a escravidão e deslocamento violento de Africanos. Temos populações oprimidas, deslocadas e que tem sua vida e sua liberdade destroçadas. Em comum, além disso, de alguma maneira, estas populações cultivam ligações importantes com a natureza. Assim, as coisas se misturam, mas sem que se perda de vista, algumas diferenças.


Isso se encontra na ideia que Bellegarde-Smith ensina de que o Haiti pertence aos Taínos, Caribes e Aruaques e que os Haitianos contemporâneos vão para a sua terra, a África (uma África mítica, é claro), e, com todo o respeito, deixam a terra para seus anfitriões. Essa é uma noção carregada de tristeza. É um lamento por aqueles que foram retirados de suas casas e um lamento também por aqueles que foram brutalmente assassinados em sua própria terra. Em meio a toda essa tristeza, há esse respeito fundamental pelo caráter de cada um e isso é basilar na hora de reconhecermos o tanto que temos em comum.

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