Frater Vameri
Entre a África e as Américas há um enorme corpo de água. Longas viagens de navio separavam os dois continentes. Em navios velozes, fazia-se a travessia em 30 dias. Em outros, mais pesados, entre 45 e 60 dias. É curioso pensar como a terra é importante no contexto Afro-diaspórico: os Africanos perdiam a sua e ganhavam uma nova, estranha e inóspita. E o Fogo? Certamente apagava-se um pouco a chama dos seus espíritos, mas fazia-se arder com vigor a fogueira da raiva e da sede por justiça.
Poderíamos também citar o ar – e dizer que os novos ares da América eram ruins, mas era o que se tinha para respirar. Ou ainda que ao encararem o céu, sonhavam em ver as estrelas como antes.
Hoje, porém, gostaria de discutir a água. Somente a água. Acho que nenhuma discussão sobre Vodou pode ignorar a água, pois foi pela água que o Vodou foi construído. Foi pelo deslizar pesado dos tumbeiros. Foi pelo batismo dos pagãos. Foi pelas lágrimas e pelo sangue dos escravizados.
Ao encarar um lago, o humano se vê refletido. Logo, o mundo além do espelho d’água é um mundo outro, o mundo invisível – colocando a água como a grande fronteira: entre a vida e a morte; entre a África e a América; entre pessoas e espíritos. Por isso, não é surpreendente pensarmos que se diz que os Lwas se manifestam pelas águas. A fronteira precisa estar lá para que se possa cruzá-la.
É debaixo da água que alguns acreditam que moram os Lwas e os ancestrais – algo que parece muito uma herança Congolesa, mas temos de ter cuidado ao fazer afirmações assertivas como essa. De toda a sorte, a ligação dos Lwas com a água é evidente e deve ser objeto de meditação, acredito. Isto poderá apontar mecanismos importantes de trocas Afro-Americanas que nos farão compreender melhor todos os processos dentro do Vodou Haitiano.
No fim, é a água que bebemos, é a água com a qual nos banhamos. É a água que é essa fronteira. Nós somos água, o planeta já foi todo água. Ora, somos nós mesmos e essa grande e única terra uma enorme fronteira, um enorme estar “aqui e ali”. A água que corre e que estoura de rochas e que precipita do céu (como dizia Raul: “traz coisas do ar”) e é a água que nos dissolve nesse grande mistério.
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